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sábado, junho 7, 2025

O mestre da ficção analítica – Revista Cult

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“A tarefa do escritor de romances não é narrar grandes acontecimentos, mas tornar interessante os pequenos.”
Thomas Mann

 

Thomas Mann tinha tanta notoriedade que, mesmo após ter ganhado em 1929 o prêmio Nobel de Literatura, voltou a ser indicado em 1948 à láurea pelos membros da Academia Sueca; mas, na ocasião, quem ganhou foi o poeta T. S. Eliot (que, na verdade, nasceu nos Estados Unidos, embora comumente achem que ele é britânico). Lembrando que, quando ganhou o cobiçado prêmio, ele já havia publicado clássicos como Os Buddenbrook (1901), seu primeiro romance (aos 25 anos de idade); A morte em Veneza, em 1912; e A montanha mágica, em 1924. Em 2025, celebramos os 150 anos do nascimento e os 70 da morte desse que é considerado, com seus ensaios, novelas e romances, um dos mais importantes escritores do século 20. Suas obras foram traduzidas para mais de 40 idiomas e venderam milhões de cópias, e até hoje ele e sua produção são matéria-prima de diversos estudos e teses.

Nascido em Lübeck, Alemanha, em 1875, ele se exilou nos Estados Unidos após a ascensão do nazismo em 1933 e só retornou à Europa em 1952 para viver na Suíça até sua morte, em 1955. No exílio, converteu-se em cidadão americano (em 1944) e foi um engajado ativista contra o regime fascista. No período, realizava discursos no rádio (nomeados de “Ouvintes alemães!”) que eram direcionados à população alemã e clamavam sem pudor à resistência contra Hitler. Thomas Mann teve um papel importante enquanto esteve no desterro. Os aliados providenciaram para que uma série de suas cartas fossem lidas no rádio. Eram 25 textos desancando Hitler e pedindo que a Alemanha voltasse à democracia – da qual Mann nem sempre foi defensor. Chegou a apoiar o conservador kaiser Guilherme II na Primeira Guerra Mundial, e seu livro Os Buddenbrook, que narra a decadência da sociedade alemã, é tido como modelo de um pensamento conservador.

Em 1930, publica Mário e o mágico, uma novela que é considerada uma das primeiras da literatura mundial a abordarem (e preconizarem) a ascensão nos anos seguintes dos regimes totalitários, sobretudo em sua terra natal. No posfácio à edição publicada pela Companhia das Letras (2023), Marcus Mazzari, um dos grandes estudiosos no Brasil da germanística, escreve que “o fenômeno do fascismo, que parece não se limitar às catástrofes do século 20, encontrou na obra de Thomas Mann uma das representações literárias mais expressivas e multifacetadas”. No livro, a narrativa se situa na Itália (também cenário de outra novela anterior do autor, A morte em Veneza), país em cujos rastros da Primeira Grande Guerra o fascismo surgiu em 1919 como uma organização paramilitar (praticamente uma milícia), que se tornou um partido conservador e de extrema direita anos depois liderado pelo ditador Benito Mussolini.

A morte em Veneza, novela sobre um escritor que se apaixona por um rapaz durante uma viagem à Itália, migrou para o cinema em 1971, cerca de 60 anos após sua publicação, dirigido pelo italiano Luchino Visconti. No filme, o protagonista – o compositor Gustav von Aschenbach –, em uma viagem de férias na cidade, se apaixona por um adolescente da nobreza polonesa, Tadzio. Décadas depois, com a publicação dos diários de Thomas Mann, vêm à tona questões relacionadas a sua homossexualidade.

A dinastia Mann

Não há como escrever sobre o autor sem falar sobre sua família, que se tornou uma espécie de dinastia intelectual ao longo das décadas, não só na Alemanha – sua influência reverberou no mundo todo. No posfácio da edição de A montanha mágica da Companhia das Letras (2016), Paulo Astor Soethe, outro especialista brasileiro em literatura alemã, cita que os Mann eram para a Alemanha o que os Kennedy representam para os Estados Unidos e o que os Windsor simbolizam para a Inglaterra. De origem privilegiada, o autor cresceu em uma abastada família de comerciantes. Em 1891, depois da morte de seu pai e do fim dos negócios familiares, ele segue para Munique, cidade na qual seu talento aflora no cenário literário e cuja casa era visitada com frequência pela elite cultural da época.

Em 1905, Thomas Mann se casa com Katia Pringsheim, uma física e matemática proveniente de uma rica família judaica, que se torna Katharina Hedwig Mann. Tiveram seis filhos, vários dos quais seguiram carreiras de sucesso, principalmente Erika e Klaus Mann. A primeira foi atriz, escritora, dramaturga, jornalista e produtora de teatro, tendo fundado em 1933 o cabaré político antifascista Die Pfeffermühle (numa tradução livre, “O moinho de pimenta”). Klaus, o segundo filho, também escritor, fugiu para o exílio na Holanda em 1933 a fim de escapar da perseguição política do regime de Hitler. Em Amsterdã (tal como o pai que se refugiara nos Estados Unidos), ele exerceu seu ativismo escrevendo para a revista Die Sammlung, na qual atacava o nacional-socialismo (o movimento ideológico e político capitaneado pelo Führer). Ele deixou várias obras, mas uma em especial teve grande repercussão, Mephisto (1936), publicada quando ele estava exilado e que teve adaptação para o cinema em 1981 pelo cineasta húngaro István Szabó (no ano seguinte, ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro).

O romance – baseado no mito de Fausto e Mefistófeles – tem como protagonista Hendrik Höfgen (inspirado na vida do famoso ator alemão Gustaf Gründgens, que foi casado com Erika, irmã de Klaus). Vale lembrar que Mefistófeles é a representação do Diabo, enquanto Fausto simboliza um estudioso que busca conhecimento e faz um pacto com o demônio para alcançar seus objetivos. Não é à toa que, após a publicação do romance, um jornal da época (o Pariser Tageszeitung) o apresentou como um roman à clef, o que deixou Klaus bem chateado. Como não lembrar de Adrian Leverkühn, personagem do romance Doutor Fausto, de seu pai, publicado uma década depois, em 1947? No livro, Thomas Mann conta a história de um compositor que descobre o dodecafonismo, e que na vida real era uma invenção do austríaco Arnold Schoenberg.

Depois de uma longa luta contra a depressão e o vício em cocaína, heroína e morfina, Klaus cometeu suicídio em 1949 em Cannes, na França, ao tomar uma overdose de soníferos (Thomas não foi ao funeral). Aliás, a família Mann enfrentou diversos problemas de saúde mental, tendo o seu filho mais novo, o músico Michael Mann, se matado em 1977. É incontornável o impacto da presença onipresente do patriarca nos acontecimentos na vida de seus filhos que, reconhecidos individualmente em suas respectivas carreiras, escaparam cada a um a seu modo da sombra do pai.

Júlia, a mãe brasileira

Thomas Mann era filho de uma brasileira. Júlia da Silva Bruhns (apelidada de Dodô) nasceu em 1851, em Paraty (RJ), filha do alemão naturalizado brasileiro Johann Ludwig Hermann Bruhns, um fazendeiro que tinha plantações de cana-de-açúcar no Rio de Janeiro e em Santos (SP); e de Maria Luísa da Silva, brasileira com sangue indígena e português (que morreu quando Júlia tinha cinco anos).

Seu pai, após a morte da esposa, retorna para a Alemanha com os filhos junto da babá negra Ana (personagem do livro Ana em Veneza [1994], de João Silvério Trevisan). Júlia deixa a infância dourada e tropical ainda criança e vai para Lübeck, onde seu pai tinha parentes. Foi lá que, aos 17 anos, se casou com o futuro senador Johann Heinrich Mann, com quem teve cinco filhos, entre eles o célebre escritor. Depois que seu marido faleceu em 1891, Júlia Mann trocou Lübeck por Munique e começou uma intensa vida social e cultural na capital da Baviera.

Segundo pesquisadores, Júlia foi inspiração para diversas obras do filho, como Os Buddenbrook, Doutor Fausto, Tonio Kröger e A morte em Veneza. Ainda assim, o diplomata carioca André Chermont de Lima (que trabalhou na Alemanha e em outros países) afirma que os alemães tratavam com esnobismo o papel do Brasil na formação da família Mann. Além de Thomas, ela teve Carla, Júlia, Viktor e Heinrich, este também escritor e famoso por suas críticas à sociedade alemã. O irmão mais velho do seu filho mais conhecido alcançou o sucesso como ficcionista, e em um dos seus livros, Entre as raças (1907), a personagem brasileira tem nítida inspiração na mãe (precisamente nas memórias escritas por ela em 1903, Lembranças da infância de Dodô, que é uma das únicas fontes disponíveis sobre a vida da matriarca Mann no Brasil).

Mas nem tudo era um “paraíso” na nova vida na Alemanha. Carla, aos 28 anos, se suicida tomando cianeto. Uma tragédia que reverberou muito tanto na vida de Júlia quanto na de Thomas. A psicanalista e socióloga Marianne Krull, em um livro sobre os Mann, apresenta o retrato de uma família nada exemplar, enredada em uma rede de adultérios, assassinatos, brigas, ciúmes, drogas, homossexualidade, incesto, inveja e suicídios.

Dispositivos literários

Corre à boca (nem tão) pequena uma história sobre o encontro de um grande autor brasileiro com o ícone da literatura alemã. O gaúcho Erico Verissimo se encontrava nos Estados Unidos em março de 1941 como diretor da seção de literatura da Livraria do Globo, de Porto Alegre. Grande entusiasta do alemão, dizem que no livro Gato preto em campo de neve (publicado no mesmo ano do encontro), ele “teria superdimensionado a extensão da conversa entre os dois, atribuindo a Mann frases e opiniões que, na verdade, o brasileiro teria ouvido em palestra proferida pelo colega”. Verdade ou não, os laços brasileiros de Mann tinham muitos nós que não tiveram tempo para ser totalmente desatados.

Para os especialistas em sua obra, é inegável que ele se utiliza de vários dispositivos literários que conduzem o interesse do leitor para as circunstâncias de estrangeiro de seus personagens. Neles, o autor depositava suas angústias, dramas interiores e inquietações por intermédio de uma aguçada análise social, atrelando-os a temas filosóficos. Em A montanha mágica, em uma sutil ironia, o sanatório Berghof, onde Hans Castorp está, se materializa em uma sociedade metaforicamente (e literalmente) doente na qual prevalecem “os bons” costumes burgueses e uma rígida moral. Seus pacientes pareciam pairar alienados diante das consequências da Primeira Guerra.

Mas, definitivamente, não temos, enquanto leitores, como evitar o alumbramento de mergulhar com tempo em obras como as já citadas ou a monumental tetralogia José e seus irmãos, que teve a Bíblia como inspiração. Ele está no panteão e vem no lastro dos grandes escritores do século 19 cujas obras, principalmente seus romances, abarcavam questões sociais e políticas, como Balzac, Dickens, Dostoiévski, Proust e Zola. Para eles, como o próprio Mann afirma, “a moral é, sem dúvida, o maior problema da vida”. Para nós, resta-nos decifrar suas alusões e, tal como ele, nos reconhecer como estrangeiros na odisseia da vida. Como diz um de seus memoráveis personagens: “No fim das contas, você não pertence apenas a si mesmo”.

Jurandy Valença é curador, jornalista e gestor cultural. Foi diretor da Biblioteca Mário de Andrade, diretor adjunto do CCSP, coordenador dos centros culturais e teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e diretor de projetos do Instituto Cultural Hilda Hilst

 

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