Glauber Rocha (1939-1981) foi um dos mais audaciosos e influentes arquitetos do cinema moderno latino-americano, cuja obra, permeada por uma estética de choque e insurgência, instaurou uma linguagem cinematográfica profundamente comprometida com as lutas sociais, os mitos populares e os dilemas históricos do “Terceiro Mundo”. Atuou como articulador do Cinema Novo, movimento que propôs a construção de uma linguagem cinematográfica comprometida com a crítica ao “subdesenvolvimento” e às mazelas advindas das desigualdades sociais. Em filmes como Deus e o diabo na terra do sol (1964), Terra em transe (1967) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), Glauber experimentou formas narrativas, visuais e sonoras que confrontam a linearidade histórica e expõem a violência da sociedade brasileira. Seus escritos, entre eles Uma estética da fome (2004a), propõem o cinema como prática insurgente e como meio de transformação do sensível (Rocha, 1997; 2004a; 2004b; 2006). Glauber produziu imagens e ideias que ainda tensionam as relações entre arte, política e memória, recusando qualquer pacificação entre forma estética e ordem social.
A atualidade do cinema de Glauber Rocha não se mede apenas pela persistência de suas imagens ou pelo lugar que ocupa na história do cinema, mas pela capacidade de seus filmes de interpelar as formas contemporâneas de violência, exclusão e colonialidade. Em um cenário marcado pela intensificação das desigualdades, pela ressignificação dos conflitos políticos e pela emergência de novos autoritarismos, as narrativas glauberianas continuam a agir como dispositivos críticos que recusam a naturalização da catástrofe social. Deus e o diabo na terra do sol ainda fala aos levantes e às derrotas do povo; Terra em transe continua a expor o colapso das representações políticas; O dragão da maldade contra o santo guerreiro segue atualizando a tragédia dos pactos entre violência e poder. Refletir sobre Glauber, hoje, é reconhecer que sua obra não se fixou no passado: ela resiste, lateja, convoca novos modos de olhar e de lutar, impondo-se como campo vivo de batalha entre memória e invenção. Sua criação artística pulsa como ferida aberta no tempo, e inscreve, no presente, a dor e o espanto de um país que ainda luta para reconhecer seus fantasmas e reinventar seus caminhos.
O cinema como ferida aberta
Glauber Rocha inventou o Brasil ao filmá-lo – transformou realidade em poesia e o cinema em gesto de criação radical e, sobretudo, em desejo de insubmissão. Inventou-o a partir da fome, da violência, da esperança. Transformou a indigência em força metafísica e a miséria em linguagem radical, ao recusar toda forma de conciliação estética com a ordem colonial do olhar. Em Uma estética da fome, Glauber (2004a) não propõe um cinema “sobre” o “Terceiro Mundo” – propõe um cinema “como” Terceiro Mundo: cinema precário, urgente, insurgente, no qual a precariedade técnica, a improvisação e a raiva não são defeitos, mas, sim, signos positivos de uma potência histórica que se recusa a ser administrada.
Como profeta em transe, Glauber compreendeu que a história brasileira se encena, se canta, se grita – inscreve-se nos corpos em movimento. Em seus filmes, a mise-en-scène dissolve as linhas do tempo histórico, abolindo a distância entre passado e presente para instaurar um espaço absoluto de sofrimento e revelação, onde cada gesto é denúncia e celebração, apocalipse e gênese. Glauber articula sua obra como um campo de confronto – estético, político, existencial.
Premiado em Cannes, adorado e execrado, Glauber transformou o cinema em incêndio – linguagem em chamas, gesto de ruptura. Como observa Peter W. Schulze (2004), seu projeto ultrapassa o anticolonialismo: ele é, de forma mais radical, uma antecipação do pensamento pós-colonial, quando este ainda sequer existia como discurso. Essa postura radical se evidencia em Der leone have sept cabeças (O leão de sete cabeças), em que a câmera, simultaneamente, observa e conspira; narra e conjura. Glauber sabia que toda câmera aberta sobre a miséria era, necessariamente, um ato de guerra contra a própria domesticação do olhar.
Seu cinema eleva a fome à categoria de ontologia estética, forjando imagens que atravessam o real, o ferem, o reinventam. Em Glauber, estética é revolta e política, é invenção poética – pensar sua obra é mergulhar nesse incêndio. Seus filmes nos conduzem a um enfrentamento com o passado, pois rompem com a história oficial ao desfazer mitos fundadores e reaprender o assombro diante da terra e da violência que a constituiu.
Glauber é uma máquina de guerra em operação contínua contra o cerco do olhar, contra o desejo de captura, contra a domesticação da diferença. No sertão que ele imaginou em estado de imagem, a nação não se redime – se dilacera. Recomeça. Inventa-se a cada combate. Há uma força em sua obra que escapa à moldura e recusa a fossilização: Glauber resiste ao monumento, à homenagem pacificada, ao arquivo acomodado. Seu cinema sobrevive como ferida em aberto – ferida que fere, sim, porém, ao ferir, interpela. Fissura no visível, corte no costume, chamado ao pensamento. Em Deleuze, ecoa esse gesto inaugural: pensar não é continuar, é romper; não é esclarecer, é ser desestabilizado. Pensar exige um encontro – e o verdadeiro encontro é aquele que fere, que desloca, que nos obriga a sair de nós. Não se trata de figura de linguagem, mas de uma condição real: o pensamento só emerge quando algo o força, quando somos atravessados por uma violência que rompe com o reconhecimento habitual (Deleuze, 1992). A ferida, aqui, não é entrave: é passagem. Pensar, diz Deleuze, é ser forçado a pensar. Não se pensa por que se quer; pensa-se por que se é arrancado do conforto das ideias prontas. Pensar é ser tocado por aquilo que escapa, insiste, fere. Não é um dom da consciência, mas um efeito da diferença. O pensamento não nasce da vontade do pensador, mas do confronto com o intolerável. Ele começa quando o mundo deixa de se deixar reconhecer e, por isso mesmo, exige ser pensado.
Em outro campo, Mignolo (2007) dá nome ao que permanece: a ferida colonial. Uma estrutura ainda em operação no presente – inscrição persistente da dominação moderna sobre corpos, saberes e visões, mais do que um trauma relegado ao passado. Glauber atua aí: não para cicatrizar, outrossim, para reabrir. Rasga o tecido da história, perturba os mitos fundadores, tensiona o visível. Seu cinema opera na zona da dor ativa – onde ver é sempre, também, enfrentar.
A ferida, em Glauber, não é algo a ser curado, mas atravessado – um rasgo que inquieta o pensamento e funda a criação. A ferida, nesse sentido, é abertura, ruptura, desconcerto – um corte necessário para que algo novo possa emergir. Fui atravessado por Glauber antes mesmo de entender que havia uma ferida ou que tipo de ferida seria. Suas imagens intervêm. Produzem cortes, não sínteses. Desde o primeiro encontro, carreguei essa ferida como se fosse pensamento: uma abertura que pulsa, uma inquietação que não cicatriza. Glauber foi atravessamento, não influência. E é nesse corte em operação – no qual o cinema fere para fazer ver, e ver é já estar implicado – que se inscreve o livro que acabei de finalizar, Sertão dilacerado: Glauber Rocha e os outros da nação (Pereira, 2025).
Sertão dilacerado
O livro é fruto de um encontro com Glauber Rocha – não de uma leitura explicativa, mas de uma travessia. Nele, procuro investigar o cinema de Glauber como uma força de desestabilização das narrativas hegemônicas sobre a nação brasileira. A partir de uma análise centrada sobretudo em Deus e o diabo na terra do sol, propus um diálogo entre cinema, antropologia e pensamento decolonial para compreender como Glauber reinscreve o sertão como o espaço dos “outros da nação” – sujeitos historicamente marginalizados, contudo, constitutivos da própria ideia de Brasil. Entendo que suas alegorias não buscam representar uma nação coesa; elas expõem suas fraturas, dando visibilidade às forças que a dilaceram. Ao longo do livro, sustento que o cinema de Glauber não se limita à crítica: ele fere e reconfigura o olhar. É nesse ponto de ruptura – vale insistir, nessa ferida ainda aberta onde memória, política e imagem se confrontam – que inscrevo minha leitura e meu envolvimento com sua obra.
Glauber fez do sertão um campo de batalha: um espaço onde a nação brasileira se revela não como unidade, mas como dilaceração permanente. É essa operação que busquei acompanhar, sabendo que, ao fazê-lo, também me tornava parte do sertão que ele inaugurou. Desde cedo, percebi que o sertão glauberiano não é o mesmo sertão que certa literatura regionalista havia nos habituado a ver, nem o mesmo que o imaginário nacional romantizou como essência do Brasil profundo. Em Deus e o diabo na terra do sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (e em outros filmes), Glauber recria o sertão como espaço de conflito entre temporalidades, como campo de luta entre forças históricas e míticas, como rasura contínua da ideia de um Brasil hegemônico. O sertão, em Glauber, é máquina de metamorfose – sempre em trânsito, sempre em disputa.
O sertão é uma categoria para pensar o Brasil – uma operação simbólica mais do que uma demarcação geográfica, um desvio no tempo da nação, e não um ponto fixo no mapa. Muito se escreveu sobre isso – e muito ainda reverbera. Em Sertão dilacerado pensar com Glauber Rocha e, na mesma medida, ser atravessado por ele. Porque pensar Glauber é expor-se à sua máquina de guerra: um cinema que não representa o Brasil, mas o explode; que não fala sobre o sertão, mas fala a partir dele, como se o sertão fosse menos um lugar do mundo do que uma posição no pensamento. Aí reside o incômodo: o sertão não se oferece como identidade e, sim, como ruído. Ao longo da história, foi capturado por múltiplos dispositivos de fixação simbólica – literários, científicos, cinematográficos – que o transformaram em espelho moral de uma certa brasilidade (Amado, 2003). Todo espelho, no entanto, é também um instrumento de vigilância. O sertão foi simultaneamente origem mítica e zona de contenção: domesticado pelo discurso civilizatório e inserido numa economia política do atraso (Pimentel, 2014). Nesse jogo, a geografia deixa de ser descrição para tornar-se dispositivo: entre litoral e sertão se constrói uma ideologia territorial – um mapa afetivo e político que rege modos de ver, nomear e governar o país (Vidal, 2021). O sertão é o duplo inquietante da cidade: avesso e fundamento, resto e origem. O Brasil sonha com sua própria imagem – e sonha esse sonho por meio da figura espectral do sertão (Lima, 1999).
Pensar o sertão, então, é pensar o Brasil desde sua rachadura – pelo que sobra, pelo que ecoa, pelo que incomoda. Glauber Rocha compreendeu isso de forma visceral – ou melhor: fez disso seu método. Em seus filmes, o sertão se mostra como uma força que pensa, que queima, que interpela. Glauber rasga a paisagem para extrair dela o que escapa ao enquadramento – o impensado, o insuportável. Deus e o diabo na terra do sol encena o sertão como ferida ontológica da nação, dobra trágica na qual misticismo e revolta, fé e violência, redenção e massacre se enroscam. Glauber transforma categoria social em alegoria – feroz, instável, ardente. Faz do sertão um desafio: o lugar onde o Brasil se desmente e, justamente por isso, se revela. Seu cinema é uma etnografia da ruína – uma etnografia feita de grito, de corte, de abismo.
A partir dessa constatação, foi impossível não entrelaçar minha investigação com as questões da diferença (que venho abordando em outros temas), da colonialidade e das tensões internas que atravessam a formação nacional. Glauber soube ver (e fazer ver) que a ideia de Brasil se construiu pela exclusão dos seus “outros”: indígenas, negros, pobres, camponeses, cangaceiros, líderes messiânicos. Aqueles que, na narrativa hegemônica, aparecem como obstáculos ao progresso, como resíduos do atraso, são, para Glauber, os sujeitos do drama histórico brasileiro. São eles que encarnam as forças subterrâneas de resistência e insurreição que a modernidade colonial tentou apagar e que continua, todavia, a latejar no corpo da nação.
Por isso, no meu livro, busco mostrar que o sertão glauberiano é alegoria de uma nação dilacerada. Uma alegoria em que os pactos – entre fé e violência, entre poder e esperança, entre redenção e traição – se sucedem sem nunca alcançar estabilidade. Glauber não oferece conciliações. Sua arte é a arte da travessia interrompida, da busca que se faz sabendo que toda promessa de redenção carrega, em si, a ameaça da nova dominação.
Essa percepção me levou a pensar o sertão como um espaço de pactos trágicos – como em Guimarães Rosa, em que cada escolha envolve perda, e toda travessia carrega o risco da queda. Pactos que se atualizam nas figuras ambíguas de Manuel, Rosa, Corisco, Antônio das Mortes – personagens que, como Riobaldo, oscilam entre a fé e o desespero, a esperança e o abismo. Nenhum deles encarna uma pureza moral: são todos atravessados por forças contraditórias, presos a um campo de tensões onde bem e mal, redenção e ruína, se dobram um no outro. Glauber, como Rosa, recusa o consolo do maniqueísmo. Ambos intuem que, na história do Brasil, os caminhos passam pelas zonas mais obscuras da violência e da ambiguidade, onde a promessa de mudança sempre traz consigo o espectro da repetição.
Ao trabalhar essas questões, também me vi obrigado a me deter nas formas de narrar. Glauber, ao desestabilizar a linearidade narrativa, ao fragmentar o tempo, ao fundir o popular e o erudito na trilha sonora e na composição imagética, cria um cinema que é, ele mesmo, sertão: espaço de resistências à homogeneização estética e política. Seu cinema se recusa a ser transparente; ele exige do espectador uma postura ativa, um trabalho de decifração e invenção de sentido. É um cinema que opera como ritual de desestabilização, como gesto insurgente contra toda forma de naturalização da ordem social.
Nessa perspectiva, a aproximação entre cinema e antropologia, que percorro no livro, não é casual. O olhar cinematográfico de Glauber se aproxima da etnografia no seu gesto de atenção às diferenças. Glauber não observa o sertão como quem descreve um objeto: ele se lança nele, se deixa afetar, se deixa dilacerar. O que me interessa, então, é pensar como o cinema – sobretudo o de Glauber – pode nos ensinar a olhar de outro modo, a habitar as diferenças sem pretensão de síntese, a acolher a multiplicidade como condição constitutiva do Brasil.
Essa travessia me levou também a repensar a própria ideia de nação. Em vez de concebê-la como um corpo uno, harmônico e reconciliado consigo mesmo – imagem tantas vezes forjada pela ideologia oficial –, Sertão dilacerado propõe compreendê-la como um campo de disputas permanentes, onde múltiplos projetos de vida e de mundo se confrontam. Essa perspectiva dialoga com autores como Homi Bhabha (2013), para quem a nação é um “espaço performativo”, marcado por traduções culturais, ambivalências e antagonismos que desestabilizam qualquer pretensão de identidade homogênea. Ao mesmo tempo, aproxima-se da leitura de Rita Segato (2007), que insiste na crítica aos paradigmas fundadores das nações modernas, ao denunciar o modo como esses projetos se erguem sobre violências estruturais, apagamentos e hierarquias de gênero, raça e território. A nação, assim, não é ponto de chegada, mas terreno em disputa, aberto à reinterpretação e à resistência. Nesse diálogo, compreendi que Glauber expõe a nação como um projeto marcado pela violência fundadora – uma construção que se ergue por meio da exclusão e da subordinação dos “outros”. Sua obra aponta que só há possibilidade de reinvenção nacional quando esses sujeitos, historicamente silenciados, forem reconhecidos como agentes de sua própria história e protagonistas de novos imaginários coletivos.
Ao final do percurso, compreendi que o sertão de Glauber é, acima de tudo, um espaço de memória insurgente. Um espaço no qual o passado não se acomoda em versões pacificadas; antes, se inscreve como promessa e como advertência. O sertão é o lugar onde o Brasil revela suas feridas – e também onde se entrevê a possibilidade de novos começos.
Impasses de uma estética insurgente
A crítica tem sido generosa com Glauber; o que, longe de ser um sinal de assimilação pacífica, talvez indique justamente a inquietante vitalidade de uma obra que se recusa a repousar. Mas a benevolência não é unânime, nem poderia ser: há ruídos, há zonas de atrito, há impasses que denunciam não uma falência, mas uma potência ainda em disputa. As objeções dirigidas à obra e à figura política de Glauber Rocha constituem, elas mesmas, uma constelação em expansão contínua, um arquivo de impasses que se acumula ao longo dos anos como sedimento e combustão. A célebre “Estética da fome”, talvez seu manifesto mais canônico e mais desconfortável, é por vezes acusado de ter caído numa armadilha tautológica: ao converter a fome em linguagem, ao elevar a miséria à categoria de forma, teria estetizado aquilo que pretendia denunciar – reconduzindo a violência da condição colonial ao domínio da metáfora, da representação, e, por conseguinte, ao distanciamento.
Tal como o xamã que trafega entre mundos sem se filiar inteiramente a nenhum, Glauber oscilava entre o messianismo e o materialismo, entre a profecia barroca e a didática marxista, recusando-se a se deixar fixar por qualquer regime discursivo único. Daí a acusação recorrente de hermetismo – talvez sintoma mais do observador que do observado. Glauber, afirmam, falava ao povo numa língua que o povo não compreendia – não por desvio ou arrogância, mas porque recusava a pedagogia da clareza como estratégia de transformação. O que esse tipo de crítica esquece é que, para ele, traduzir o real exigia não simplificar, e, sim, intensificar: recorrer a uma linguagem visionária, uma fala em estado de febre, que não explica o mundo – antes o interpela, o inquieta, o reinventa como imagem em transe.
No plano das imagens e das práticas – onde raça e gênero são zonas de fratura e colisão –, sua obra tem sido lida como um campo minado de tensões não resolvidas. A denúncia da colonialidade, dizem, poderia ter trazido consigo os espectros do próprio colonialismo: a insinuação de arquétipos racializados, o silenciamento de corpos femininos, o predomínio de um ponto de vista autoral centrado num sujeito masculino e iluminado.
Nunca foi minha intenção – nem aqui, nem em Sertão dilacerado – descer a essas camadas de fricção, não por negligência, mas porque desconfio dos regimes críticos que pretendem reduzir a potência de uma obra à anatomia de suas possíveis faltas. Acredito que há outras formas de escuta – menos correcionais, mais cosmopolíticas – capazes de acolher as dissonâncias como parte constituinte do que uma obra tem de mais vivo. E talvez, pensando bem, seja precisamente aí, no interior dessas aporias, que se localiza a força vital da obra glauberiana: sua recusa a ser pacificada pelo discurso crítico, sua resistência a ser esvaziada em nome da coerência. Glauber pensava o cinema como guerra e como feitiçaria, como campo de operações ontológicas onde se disputa a própria condição de mundo – e de mundo possível. O que muitos chamam de contradição, talvez devamos chamar, quem sabe com mais precisão e, certamente, com mais generosidade, de multiplicidade.
Por isso, voltar a Glauber hoje, e convidar a pensá-lo, é mais urgente do que nunca. Como disse logo no início deste texto, em tempos de recrudescimento das desigualdades, de novas formas de colonialidade, de apagamento das diferenças, Glauber nos oferece instrumentos para resistir: o gesto da recusa, o compromisso com a inquietação, a aposta na potência do inacabado.
Glauber dilacerou o sertão para nos devolver a sua ferida. O que fazemos com ela? Essa é a pergunta que permanece em suspensão, como reverberação incessante. A esperança é que Sertão dilacerado contribua, mesmo que modestamente, para sustentar essa escuta difícil – aquela que se faz nas dobras do sertão e do Brasil, onde a história segue pulsando como ferida aberta e como possibilidade por vir.
Talvez, no fim das contas, o que proponho seja isso: que pensar Glauber Rocha hoje consiste em tomar a ferida como método, não como patologia. É perceber que, nas ruínas da nação, germinam possibilidades – não para restaurar o que se perdeu, mas para intensificar o que ainda insiste em viver. Glauber nos ensinou a ver com olhos rasgados pela fome e pela esperança. Resta a nós seguir a travessia, conscientes de que ela não oferece chegada, porém, exige coragem para habitar o inacabado.
Para finalizar: sertanear o impossível
Vivemos um tempo em que o cinema brasileiro voltou a incomodar – e, portanto, a existir. Tempo de prêmios, sim, mas sobretudo de imagens que pedem atenção, confronto, escuta. Bacurau como alucinação armada; Marte um, como futuro que persevera apesar do colapso; Noites alienígenas, como cartografia da dor amazônica; Ainda estou aqui, como memória insurgente contra o apagamento. E agora, A Queda do céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, que nos convida a escutar o xamã Davi Kopenawa e a cosmologia Yanomami, como crítica radical ao “povo da mercadoria”, que ameaça fazer o céu desabar. Imagens que recusam o Brasil conciliado, que desmontam o mito da unidade e reativam o país como campo de batalha entre mundos que não querem – e talvez não possam – se reconciliar. É nesse cenário que Glauber segue necessário e presente, como ferida operante.
Como indiquei, Glauber fere porque vê, e ver, nesse caso, é também ser ferido. Sua câmera rasga. Sua montagem convoca. Sua alegoria explode. Revisitar Glauber, como tentei sugerir neste texto, é sertanear o presente – atravessar ruínas, desenterrar fantasmas, pensar com o que arde. Porque o Brasil, se ainda é possível pensá-lo, talvez só se deixe pensar a partir daquilo que nele insiste: o resto, o corte, o que sobrevive, apesar.
Se há algum sentido no que proponho – se as aproximações entre Glauber Rocha e Guimarães Rosa, como argumento em Sertão dilacerado, se sustentam com alguma razoabilidade – então talvez possamos imaginar o surgimento de um verbo: sertanear. O verbo sertanear quem sabe ainda não exista nos dicionários – mas pulsa, subterrâneo, nas veredas de Guimarães Rosa e nas imagens incendiadas de Glauber Rocha. É uma palavra por vir, que nomeia menos um lugar do que um modo de travessia. Sertanear não é apenas habitar o sertão: é ser afetado por ele, desfigurar-se nele, pensar com suas ambiguidades. Em Grande sertão: veredas, Riobaldo é arrastado pelo sertão, dobrado pelas forças que nele se cruzam: Deus e o diabo, jagunço e poeta, fé e dúvida. Sertanear, nesse sentido, é mover-se num território instável, onde toda rota é bifurcação e toda verdade é inquietação. Glauber leva essa travessia ao cinema: seu sertão é campo de guerra simbólica, paisagem que pensa, lugar onde se confrontam os fantasmas fundadores da nação. Sertanear, em Glauber, é filmar contra o visível; é recusar o sertão como cenário e ativá-lo como alegoria viva, ferida operante, dispositivo de insurreição estética. Como verbo inventado, sertanear não descreve – ele convoca: a errar com sentido, a escutar com demora, a habitar o Brasil pela via de sua rachadura.
Não se trata de fixar um território ou recuperar uma identidade perdida, mas de nomear um gesto – errante, inconstante, atravessado pela ambiguidade – que teima em percorrer o país a partir de suas fraturas. Sertanear seria, então, atravessar o Brasil pelas bordas, pela contra-história, pelos rastros dos que ficaram fora do mapa oficial. Seria pensar com a terra, mas também com a dor; com o silêncio, mas também com os gritos; com o espanto, mas, sobretudo, com a escuta. Entre Rosa e Glauber, sertanear torna-se verbo de travessia: conjugar política com poesia, violência com imaginação, ruína com reinvenção.
O sertão, para Glauber, seria verbo. Sertanear é verbo insurgente – é atravessar a fome, habitar a contradição, reinventar o olhar diante da ruína e da esperança. No sertão glauberiano, a nação não é promessa nem posse: é combate, é rasura, é travessia. O Brasil que ele expôs nunca foi unidade, e, sim, multiplicação de ausências, conflito de temporalidades, ferida aberta no corpo da história.
Se há uma herança que Glauber nos lega é a da inacababilidade: a recusa do fechamento, a aposta no inacabado como horizonte ético e estético. Seus filmes não buscam conciliação: convocam o dissenso, celebram o inacabado como forma de resistência. Pensar Glauber é escutar o sertão que continua a sangrar dentro de nós – e aceitar que toda imagem, toda palavra, todo gesto insurgente é apenas o começo de uma nova e necessária batalha.
Pensar Glauber Rocha, hoje, não é tarefa para quem busca consolo, nem para quem deseja encontrar, ao fim da travessia, qualquer promessa de repouso; pensar Glauber, ao contrário, é ceder ao desconcerto, é deixar que a imagem fira, que a ideia arranhe, que o sertão volte a sangrar onde a nação quis plantar silêncio. Glauber não quis nomear o Brasil – quis ser arrastado por ele, quis que o sertão falasse por seus próprios ruídos, pelas vozes que nunca foram voz, pelas bocas cheias de terra, pelos olhos cegos de tanto ver. E se agora voltamos a ele – não como quem volta a um mestre, mas como quem volta a uma ferida que nunca fechou – é porque alguma coisa em nós ainda arde, alguma coisa recusa a cicatriz, alguma coisa tensiona o gesto de se acomodar. O que Glauber filmou não foi um país, foi um pressentimento; não foi uma história, foi uma vertigem. E se há algo que ainda nos resta – a nós, que chegamos depois, mas ainda estamos aqui – é escutar o que resta, mesmo em frangalhos, mesmo em fumaça, mesmo na beira do grito, porque, talvez, só aí, no ponto exato em que a imagem se rompe, ainda seja possível recomeçar. Ou não.
Pedro Paulo Gomes Pereira é professor titular de antropologia da Unifesp.
Referências
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