Rita Lee era popular no universo artístico, mas reservada nos assuntos pessoais. Dito isso, será que ela gostaria que o marido, Roberto de Carvalho, e os três filhos, Beto, João e Antonio, lessem sua carta de despedida, publicamente, três semanas antes de sua morte? É isso o que acontece e é como esse chamariz que está sendo “vendido” o documentário Rita Lee – Mania de você, disponível no streaming Max, desde 8 de maio, quando se completou dois anos da morte da cantora e compositora.
A produtora de Rita Lee – Mania de você é a argentina Mandarina. Julián Troksberg, o roteirista, e Guido Goldberg, também roteirista e diretor, são argentinos. Numa entrevista para o site da revista Billboard, Goldberg disse que sua mãe tinha o disco com a música Mania de você e ele adorava. Parece que isso já bastou para que fosse contratado para estrear na direção de um documentário de uma personalidade brasileira.
Nada contra os argentinos se eles fizessem um trabalho, no mínimo, decente. O diretor francês radicado na Suíça Georges Gachot é, por exemplo, um apaixonado pelo Brasil desde 2003 e comandou ótimos documentários sobre Maria Bethânia, Nana Caymmi e João Gilberto. O problema maior não está, portanto, na nacionalidade dos realizadores e, sim, em como eles apresentam a trajetória, íntima e profissional, de Rita.
Há algo de errado desde o início, quando é ignorada a fase de Rita Lee como vocalista de Os Mutantes e já se entra na era da banda Tutti Frutti. Ok, a gente sabe que a briga entre Rita e os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias perdura mesmo após a morte dela, mas será que uma imagem do Festival de Música Popular Brasileira, de 1967, em que o trio cantou Domingo no parque ao lado de Gilberto Gil, não taparia o buraco?
O roteiro é cronológico e tim-tim por tim-tim, como se estivesse apresentando a cantora para os gringos – e deve ter sido mesmo esse o objetivo. Rita é mostrada como a mulher à frente de seu tempo, liderando a primeira banda de rock do Brasil, e como a cantora que agradou às massas em hits como Lança perfume e Baila comigo. Chegam, então, a fase da separação de Roberto de Carvalho, as bebedeiras e os vícios, o hiato que a deixou fora da cena musical, sua reinvenção após um grave acidente doméstico, a despedida dos palcos e o câncer de pulmão, que a vitimou em 8 de maio de 2023. Tudo isso é contado em 80 minutos, seja por entrevistas da própria Rita para a televisão, seja pelos depoimentos de parentes, amigos e colegas de trabalho.
Se uma minissérie já seria pouco para narrar a gigante trajetória dela, imagine um filme com uma duração tão curta. Na tentativa de querer abraçar o mundo e não deixar nada de fora, privilegiou-se a edição em ritmo de videoclipe. O trechinho de uma entrevista é sempre entremeado com o trechinho de uma música, dando a impressão de que Mania de você vai começar a todo instante – a mesma sensação de ver um imenso trailer. Assim, depoimentos de celebridades, como Ney Matogrosso, Gilberto Gil e Ronnie Von, perdem ainda mais importância. Nem mesmo o que seria o clímax do documentário (a oportunista leitura da carta) consegue comover porque a montagem picota as falas do marido e do primogênito – com alguns segundos de uma canção, é claro.
Mas, felizmente, nem tudo está perdido. Há dois fatos inéditos revelados: qual teria sido o real motivo da prisão de Rita, em 1976, e como ela se tornou a compositora mais censurada durante a ditadura militar, sobretudo pelas letras que esbanjavam sexualidade e prazeres femininos. Por trás dessas “descobertas” está o maior responsável por dar um molho informativo ao documentário. É o jornalista e escritor Guilherme Samora, considerado o “filho postiço” de Rita, quem tem as melhores oportunidades de mostrar a história factual da nossa Rainha do Rock – e sem cair na pieguice, no oba-oba ou na fatalidade.
O outro documentário, Ritas, é muito melhor. Ainda não é o registro definitivo sobre Rita Lee, mas, ao menos, tende a agradar mais aos fãs. O filme chega aos cinemas no dia 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia, de quem Rita era devota, é o dia que a cantora mudou simbolicamente seu aniversário (antes era 31 de dezembro) e é o dia que a cidade de São Paulo oficializou como o Dia de Rita Lee. Não há melhor data de estreia para uma homenagem.
A intenção, desta vez, não é trazer novidades nem explicar o passo a passo da artista. Ritas lembra o formato de outros dois outros documentários: Titãs: A vida até parece uma festa (2008) e Moonage Daydream (2022), sobre David Bowie, que, aliás, foi uma das grandes inspirações de Rita. Não há entrevistas com personalidades nem parentes. É Rita Lee por Rita Lee Jones de Carvalho – e centrado apenas na carreira dela. A maior atração, sem dúvida, é o depoimento que ela deu à codiretora Karen Harley, antes da pandemia. Sua última entrevista. Rita abriu sua casa para mostrar seu cantinho preferido, o jardim cultivado pelo marido Roberto de Carvalho, a estante de miniaturas, suas pinturas, os saguis, seu cão e gatos. “Eu gosto mais de bicho do que de gente”, diz ela numa cena.
Com a duração igual ao do “rival” Mania de Você, Ritas celebra a arte de Rita Lee e, apenas nas palavras dela, expõe a mulher sem amarras que desbravou territórios até então impenetráveis – sua sinceridade ao relembrar a saída da gravadora Phonogram é um dos destaques. Ela cantou o amor e o sexo sem precedentes e isso está impresso no baú de recordações musicais, que passa por trinta canções, como Mania de você e Chega mais. Há ainda as célebres parcerias, feitas em programas das TVs Globo e Bandeirantes, com Maria Bethânia (Baila comigo), João Gilberto (Jou jou balangandans) e Elis Regina (Doce de pimenta). Ritas ainda tem uma façanha: trazer um trecho inédito de uma entrevista para a RTP (Rádio e Televisão Portuguesa), em 1969, após uma turnê de Os Mutantes. Numa deliciosa e nostálgica colagem audiovisual, as músicas são apresentadas quase na íntegra, fazendo com que o espectador tenha uma profunda imersão no cancioneiro de Rita.
Outro ponto alto é enfocar a porção de atriz de Rita, que fazia tipos impagáveis em TVLeezão, programa da MTV que foi ao ar apenas no ano de 1991. No cinema, ela atuou em Dias melhores virão (1989), um grande filme com Cacá Diegues, ao lado de Marilia Pera, mas é lembrada em Ritas pelo igualmente divertido Durval discos (2002). Em resgates como esses, nota-se o valor da pesquisa, que teve início em 2019 e só terminou no início deste ano. Pelo tempo de realização dos dois documentários dá para reparar a diferença entre eles. Rita Lee – Mania de você levou dois anos para ser concluído. Ritas, que ainda traz belas animações se sobrepondo a algumas imagens num cuidadoso trabalho de pós-produção, demorou seis anos. É como diz o velho ditado: a pressa é inimiga da perfeição.
Miguel Barbieri é jornalista