“A ferrugem intelectual é ainda o mais poderoso e corrosivo ácido contra a boa crítica”.
Silviano Santiago.
Virginius (Narrativa de um advogado) é um dos primeiros contos de Machado de Assis, publicado no Jornal das Famílias em julho-agosto de 1864, quando o escritor mal completara 25 anos de idade. Ao começar a militar no gênero da narrativa curta, após o bom exercício da crônica, Machado, como lembra Raimundo Magalhães Júnior, “não hesitava em valer-se de fábulas e provérbios, parafraseando aquelas em histórias morais e utilizando estes como temas de contos”. O assunto é a brutalidade da instituição da escravidão (sobre a qual o escritor raríssimas vezes tratou tão diretamente como aqui); o pano de fundo, um episódio perdido no limiar entre as brumas da lenda e as cinzas da História, segundo o qual o decênviro romano Appius Claudius, ao tentar conspurcar a honra da bela Virgínia, filha do centurião Virginius, acaba por provocar a morte da moça pelas mãos do próprio pai, que prefere vê-la sem vida a tê-la desonrada. Trata-se, segundo John Gledson, de um conto “estranho”, cuja história, “fascinante na leitura, se revela, afinal, desconexa e insatisfatória”.
Tal conto “estranho” é a base do espetáculo Elisa em fuga: Segundo ensaio sobre o terror, que a Sociedade Arminda está apresentando no Ágora Teatro com dramaturgia e direção de José Fernando Peixoto de Azevedo. Trata-se de uma experiência teatral breve, transcorrida em parcos sessenta minutos de duração, e aparentemente simples pelo modo como organiza seus dispositivos artísticos e articula as linguagens do teatro narrativo, da música e do audiovisual, mas cujo impacto sobre o corpo e a consciência crítica do espectador é de uma intensidade perturbadora.
Boa parte da estranheza do conto advém da assimetria existente entre a brutalidade do tema tratado e a airosidade retórica empregada pelo narrador, motivada interna e externamente na narrativa, como será exposto a seguir. Dessa assimetria, talvez, advenha a dificuldade da crítica em qualificar a obra. (Raimundo Magalhães Júnior chega mesmo a falar do “desprezo” com que o autor tratou o conto, jamais incluído por ele nas coletâneas que organizou em vida). Dois movimentos discursivos chamam a atenção do leitor mais atento, e é a partir deles, segundo nos parece, que Elisa em fuga extrai uma agudeza estético-política cada vez mais rara nos palcos do país. Internamente, no nível próprio do enunciado, a obra apresenta o mundo absolutamente ilusório da escravidão benfazeja, reforçada a torto e a direito não somente pelos personagens brancos, como seria de se esperar, mas também por um dos escravizados, que em seu depoimento se diz “amigo” de seu senhor, cujos nome e epíteto não poderiam soar mais harmoniosos: Pio, Pai de todos. Desse modo, a oposição estabelecida entre o ambiente cordial vivido por dominadores e dominados e a irrupção da violência exercida pelo filho do fazendeiro somente pode soar pelo viés do melodrama – estilo, como sabemos, não afeito à pena de Machado de Assis. Externamente ao enunciado, isto é, no nível da enunciação dirigida ao leitor, o conto investe em um tipo de oratória que abranda o tempo todo a brutalidade da matéria narrada, escondendo-a ora no nível do substrato do registro romanesco, ora no nível do substrato do registro trágico, de acordo com a oscilação adotada no próprio relato do advogado narrador.
Pois bem, o que Elisa em fuga: Segundo ensaio sobre o terror faz é escancarar tamanha brandura retórico-discursiva, revelando a sua impertinência ao lidar com tema tão violento, e evidenciando, por conseguinte, o aspecto grotesco que a branquitude assumiu desde sempre na vida social brasileira. O espetáculo converte, assim, uma oratória bem pensante em uma experiência de terror. Vivida pelos corpos negros desde sempre. Em cena, Thaina Muniz, cuja extrema juventude contrasta tão fortemente com a maturidade de sua performance, se expõe como uma mulher negra – a quem cabe o papel de intérprete (no teatro e da obra literária) – ao mesmo tempo que expõe os mecanismos empregados no processo de violência racial no país.
O corpo negro da atriz e os corpos negros evocados por ela, expandidos para a linguagem do audiovisual, transformam-se em pura presença – disposta a fazer calar qualquer palavra falaciosa, mas verossímil, a serviço do consenso. A trilha e a música em cena (a cargo de Agá Péricles), as imagens ao vivo (captadas por Samurai Cria e editadas por Soma) e o desenho de luz (executado por Denilson Marques) transformam-se em rituais de intensidade, por meio dos quais o terror se instaura. Por puro dissenso.
Evidenciar o terror é combater a atmosfera de melodrama barato que paira sobre a sorte de Elisa; é criticar a perspectiva romanesca do heroísmo às avessas de que se reveste a atitude de Julião; é desautorizar o trágico, inexistente, no trato da questão. Ensaiar o terror é convidar cada espectador a vê-lo, senti-lo, ouvi-lo. E apoiar a fuga de Elisa, seja da cena, da qual recorrentemente ela ensaia não querer fazer parte; seja para dentro da cena, onde o espectador talvez ouse mirar para o abismo da perversidade e ser encarado, de volta, por ele.
ELISA EM FUGA: SEGUNDO ENSAIO SOBRE O TERROR
Até 18 de maio
Sábado, às 20h; domingos, às 19h
Ágora Teatro
Rua Rui Barbosa, 664 – Bixiga – São Paulo (SP)
Lotação: 50 lugares
Duração: 60 minutos
Classificação indicativa: 16 anos
Ingressos: R$ 80, R$ 40, R$ 35
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.