O segundo Omnibus de Cassidy, que reúne as edições 7 a 12 da série italiana criada por Pasquale Ruju, nos transporta, mais uma vez, para os anos 1970, numa imersão visceral na vida agitada de Raymond Cassidy, com sua ambiguidade de anti-herói vivendo entre o crime e a busca por algo que nem ele mesmo compreende totalmente. Publicado originalmente entre novembro de 2010 e abril de 2011, pela Sergio Bonelli Editore, estas edições chegaram ao Brasil pela Editora 85, e mergulham num universo onde a ação se junta às reflexões sobre punições, perseguições, parcerias e ações criminosas, somadas aos ecos de um passado que se recusa a desaparecer. A trama segue acompanhando Cassidy pelas ruas de São Francisco e cruzando a fronteira rumo ao México, fugindo do FBI, enfrentando mafiosos e reencontrando velhos amigos. Há, aqui, um sabor inconfundível de cinema setentista — pense em Alcatraz: Fuga Impossível, O Poderoso Chefão, Apocalypse Now (nas cenas de flashback) ou Operação França –, mas transposto para os quadrinhos repleto de referências culturais que vão desde a trilha sonora (o autor faz questão de nomear as músicas) até os figurinos, tudo isso sustentado por uma arte assinada por diversas pessoas, cada uma trazendo sua própria textura à odisseia criminosa.
O volume abre com Pacto Criminoso e O Jogo da Vingança, histórias que funcionam como um aquecimento narrativo, estabelecendo o tabuleiro onde Cassidy jogará suas partidas de vida ou morte, ainda que não alcancem o mesmo peso emocional ou a intensidade das tramas seguintes. Em São Francisco, vemos um Cassidy acuado, forçado a fechar um acordo arriscado com o chefão da máfia “Uncle Bob” Cicero para salvar seu amigo Ace Gibson. Já em O Jogo da Vingança, a tensão escala com um plano ousado contra as Tríades chinesas. Essas edições iniciais, embora mais contidas em ambição, plantam as sementes para o que está por vir, expondo relações e conflitos que refletem o submundo do crime e o contexto social de uma América pós-Guerra do Vietnã, onde a desconfiança nas instituições e a violência urbana moldam a existência de homens como Cassidy. Quando a narrativa cruza a fronteira em Rumo ao Sul e A História de Lázaro, o volume ganha um fôlego novo, trocando o asfalto de São Francisco pelo calor do México, um cenário que serve tanto como pausa, quanto como palco para uma escalada de complicações que enriquecem a jornada de Cassidy. É nesse ponto que as histórias do Omnibus começam a se desdobrar como algo mais, transformando-se numa meditação sobre como o passado molda o presente, costurando ao roteiro um contexto de redenção e danação que reverbera nas escolhas do protagonista e nas consequências que ele não pode evitar.
Seguindo essa trilha, Um Beijo e Uma Pistola aceleram o ritmo, levando Cassidy numa corrida desesperada de Cozumel a Veracruz e, finalmente, a Acapulco, onde se fecha um ciclo de vingança com cara de western moderno. A edição mostra a habilidade de Ruju em equilibrar sequências de ação — me lembrou muito o estilo visual e narrativo dos longas de Sam Peckinpah — com momentos de introspecção, nos quais Cassidy reflete sobre os amigos que arrisca e os inimigos que cria nessas situações. Aqui, o México se torna um lugar onde a beleza convive com a brutalidade dos “poderosos locais”, um reflexo sociológico e expandido de toda a complicada consolidação dos cartéis no norte do país, que aconteceria, de fato, no final dos anos 70. A narrativa ganha contornos existencialistas ao questionar até que ponto a honestidade pode justificar o sacrifício, enquanto as reviravoltas da história mantêm o leitor preso a uma tensão que é, ao mesmo tempo, física e emocional.
O ponto mais bem estruturado do volume, por incrível que pareça, vem com Relatório Confidencial, uma edição que rompe com a linearidade tradicional para trazer um olhar diferente sobre o protagonista, construindo-se a partir de um dossiê entregue aos agentes Clayton e Foster pelo senador Howlag, uma figura que encarna o poder corrupto do governo. Através desse documento, temos uma variação de perspectivas — Cassidy como pai de família, herói de guerra, desertor e fora-da-lei –, cada uma pintando um quadro diferente do personagem, uma abordagem que Ruju executa com maestria ao entrelaçar passado e presente sem perder o fôlego narrativo. A arte de Fabio Valdambrini acompanha essa estrutura, alternando entre flashbacks estilizados e cenas contemporâneas com uma fluidez admirável, enquanto o texto levanta questões sobre escolhas em sociedade que possuem grande impacto. Culturalmente, a edição dialoga com a paranoia da era Nixon, um tempo de dossiês e segredos, mas também com uma tradição literária de personagens ambíguos, como os de Dashiell Hammett ou Cormac McCarthy. O conto inédito de Ruju (Route 66) sobre os assaltos mais marcantes de Cassidy, incluído como bônus também na publicação da Editora 85, adiciona uma camada extra à experiência, mantendo o leitor intrigado, sugerindo que o verdadeiro coração da história ainda está por vir.
A organização um tanto rígida do volume, com suas 594 páginas divididas em seis longas edições, pode assustar leitores mais preguiçosos, mas isso é compensado pela progressão orgânica da trama, que reitera o destino trágico de Cassidy com uma urgência que cresce a cada página virada. Artisticamente, a diversidade de estilos visuais combina com as etapas da história (que se passa em diferentes localizações), enquanto as referências históricas e sociológicas — da Guerra do Vietnã ao crime organizado — colocam a narrativa num contexto específico e universal. Na soma de tudo, temos um anti-herói que não quer redenção, mas procura compensar algumas falhas do passado e cumprir compromissos perigosos antes de morrer. Essas edições são mais um passo na construção de uma lenda. O que resta para um homem que já perdeu tudo, exceto o mistério que o define? É essa pergunta que faz de Cassidy não apenas uma saga, mas uma curiosidade reflexiva que nos faz procurar por muito mais.
Cassidy – Volumes 7 a 12 — Itália, novembro de 2010 a abril de 2011
Contendo: Pacto Criminoso (Patto criminale), O Jogo da Vingança (Il gioco della vendetta), Rumo ao Sul (Verso Sud), A História de Lázaro (La storia di “Lazaro”), Um Beijo e Uma Pistola (Un bacio e una pistola), Relatório Confidencial (Rapporto confidenziale).
No Brasil: Cassidy Omnibus – Vol.2 (Editora 85, novembro de 2023)
Roteiro: Pasquale Ruju
Arte: Elisabetta Barletta (#7), Fabio Valdambrini (#8), Davide Furnò, Paolo Armitano (#9), Gianluigi Gregorini (#10), Luigi Cavenago (#11), Fabio Valdambrini (#12)
Capas: Alessandro Poli
594 páginas