Para a minha mais profunda surpresa, essa palhaçadinha chamada Godzilla vs. Marvel finalmente lançou uma boa edição! Dá até medo de elogiar, porque vocês sabem: estraga! Bem, Joe Kelly escreve aqui uma trama que entrelaça os dilemas de identidade trazidos pelo simbionte com a destruição típica do Godzilla. Passada nos anos 1980, num momento em que Peter Parker carregava o peso de Venom em suas costas — herança das abobalhadas Guerras Secretas —, a história aproveita esse cenário para intensificar os dilemas do jovem herói, que se vê sufocado por sua vida financeira, pelos altos e baixos de um triângulo amoroso com Mary Jane e Felícia Hardy (Gata Negra), e a tensão constante de esconder quem realmente é. Quando Godzilla aparece “do nada” em Nova York, esmagando tudo em seu caminho, o caos externo esbarra nas tormentas pessoais de Parker, e o roteiro até brinca um pouco (de maneira nada inteligente e meio simplória) com essa dualidade.
Nick Bradshaw é o responsável, aqui, pela coisa mais interessante, cativante e elogiável da edição: a arte. Sim, apesar de o roteiro ter boas escolhas dessa vez, não se compara à abordagem estética da edição, que é criativa e visualmente impressionante. Com uma Nova York retratada em desespero e grandiosidade, com prédios tombados como brinquedos e sombras projetadas engolindo as pessoas num espetáculo sufocante, o artista conseguiu mostrar densidade e impacto no ponto mais chamativo do projeto (a relação Venom-Godzilla) e, ainda assim, criar um excelente entorno. O ponto alto, claro, está no surgimento do Venomzilla, fusão fascinante e grotesca que eu queria ver em muito mais páginas, com suas escamas se contorcendo como tentáculos e veias pulsando num corpo de criatura lutando para se libertar. Essa abordagem carregada de body horror amplifica o conflito central e dá ao leitor uma imagem palpável da luta entre controle (simbionte) e caos com propósito (lagarto atômico) que envolve o kaiju, seu inimigo-despertador alienígena e o herói que trouxe o uniforme-criatura para a Terra.
Confesso que ver o menino Parker recorrer às manoplas do Shocker para bombardear o simbionte com ondas sonoras me arrancou um sorriso. Foi uma escolha simples do roteiro que funcionou muito bem e que mostrou o quanto o Aranha é inteligente a ponto de observar o que acontece ao seu redor e usar os materiais mais improváveis que tem em mãos para ganhar tempo até que a cavalaria chegue. Joe Kelly acerta ao resgatar uma fraqueza clássica do Venom, mas escorrega na pressa com que resolve tudo (a luta entre as criaturas existe — e é boa — mas não progride organicamente para dar uma noção de “começo, meio e fim”), como se o autor preferisse as cenas chamativas a uma construção mais cuidadosa que levaria para o final. Ainda assim, há um brilho especial na resistência de Godzilla, que, com seu sopro atômico, expele o parasita alienígena, mostrando a força bruta rejeitando ser um peão de uma criatura externa e sorrateira.
A capacidade de ir além do espetáculo raso e sondar as fissuras dos indivíduos e das estruturas que os cercam, com o simbionte funcionando como um espelho das distorções que nascem de pressões internas e externas, torna esta a primeira boa revista da série Godzilla vs. Marvel, que, além de tudo, sabe aproveitar muito mais (e com maior sentido) as batalhas envolvendo o lagartão e a gosma inteligente. No desfecho, a transformação de Eddie Brock em Godvenom reforça a noção de que os ciclos de falhas e ambições desmedidas estão fadados a se repetir, gerando novos monstros a partir de velhas feridas. Enquanto Godzilla se afasta, Parker assume um erro e Nova York tenta se reerguer, a permanência de um Venom alterado nas sombras torna a história inteligentemente inacabada (o melhor uso desse recurso até agora). O autor nos faz entender que os verdadeiros monstros não vêm apenas da terra ou do mar, mas das fraquezas prontas para se erguer do entulho e desafiar, outra vez, seu inimigo de estimação. Um retorno que não oferece trégua.
Godzilla vs. Spider-Man (EUA, 30 de abril de 2025)
Roteiro: Joe Kelly
Arte: Nick Bradshaw
Arte-final: Nick Bradshaw
Cores: Rachelle Rosenberg
Letras: Joe Caramagna
Capa: Nick Bradshaw, Rachelle Rosenberg
Editoria: Nick Lowe, Kaitlyn Lindtvedt, Tom Groneman, C.B. Cebulski
25 páginas