Reinado do Demônio (Devil’s Reign) é uma minissérie que serve de conclusão para o sexto volume de Chip Zdarsky à frente das histórias do Homem Sem Medo, bem como de ponte para o sétimo volume, além de ser uma das sagas “menores” que a Marvel tem feito bastante nos últimos anos, reunindo grande parte do panteão de personagens da editora em um evento um pouco menos impactante para o universo como um todo. Não se enganem, porém: a minissérie está longe de ser autocontida em suas quase 600 páginas que englobam as edições principais da história, alguns one-shots e tie-ins que contam com Homem-Aranha, Capitão América, Luke Cage, Jessica Jones, Quarteto Fantástico, Cavaleiro da Lua, Soldado Invernal, Homem de Ferro, Mulher Aranha e mais uma penca de heróis enfrentando Fisk. O Rei do Crime, após descobrir que sabia a identidade secreta do Demolidor, mas que por algum motivo não pode se lembrar – resultado dos eventos de Crianças-Púrpura – tem um surto, decidindo usar sua posição como prefeito para iniciar uma caça às bruxas contra os vigilantes, usando vários super-vilões como parte de sua força-tarefa devidamente nomeada de Thunderbolts.
Curiosamente, a minissérie é mais sobre Fisk do que Matt. Apesar do Demolidor ter, claro, uma posição de protagonismo nas seis edições principais, a história como um todo, incluindo os one-shots e tie-ins, revelam diversos aspectos do vilão e seus relacionamentos com vários personagens desse universo, dos quais ele guarda segredos a serem explorados em sua caçada. Por exemplo, Devil’s Reign: X-Men tem um arco interessantíssimo sobre o passado conturbado entre Fisk e Emma Frost, com uma trama de conflito político e midiático entre a dupla que expõe alguns fantasmas e ameaças antigas (o roteiro também faz um trabalho eficiente ligando a minissérie aos eventos dos livros dos X-Men, com a imunidade diplomática dos mutantes e a influência de Krakoa no cenário internacional). Como essas tangentes são escritas por roteiristas diferentes e desenhadas por diversos artistas, vemos diversas abordagens dramáticas e narrativas, muitas das quais agregam bastante para o desenvolvimento do Rei do Crime, além de pintarem um quadro geral de interconexão que é gostoso de ler – não só com os diversos autores, mas também na forma como Zdarsky escreve bem vários personagens na principais edições.
Outro exemplo bacana é o tie-in com o Soldado Invernal, um personagem com zero relação com Fisk, mas que serve tanto como um bloco de invasão divertido (a diagramação aqui é sacanagem de tão boa) quanto como um olhar íntimo para Bucky (buscando sua ficha para descobrir seu passado) e Fisk (que vemos em um momento de vulnerabilidade). Algumas subtramas são herméticas demais (os tie-ins da Mulher Aranha e o one-shot do Cavaleiro da Lua vêm à mente), soando meio deslocadas no evento, mas ainda são boas leituras. A única que eu realmente desgosto é Devil’s Reign: Superior Four, que acompanha Otto Octavius em uma jornada sem pé nem cabeça pelo multiverso com algumas variantes esquisitas, servindo para Zdarsky trazer alguns pesos pesados para a luta em Nova York. Estou me desviando, porém: grande parte da saga é sobre o envolvimento desses personagens com Fisk, seja aqueles que têm um histórico com o vilão, seja quem acabou ficando no meio do fogo cruzado causado pelos atos do antagonista.
Vemos muito disso nas seis edições principais, que retratam constantemente o ódio de Fisk pelo Demolidor, mas também seu relacionamento com seu filho Butch mais para o final da minissérie e seu amor por Mary, com seu arco terminando em uma nota relativamente simpática com seu período sabático fora do submundo de Hell’s Kitchen e longe do poder político da prefeitura de Nova York (minha única ressalva nessa abordagem de Zdarsky com o vilão é a falta de participação do Wesley na história). Em termos narrativos, o autor me decepcionou no escanteamento do arco com os Stromwyn, que só aparecem no finalzinho da história como um ponto de exclamação (que por si só é bacana) de quem é Fisk e de como ninguém pode comandá-lo, mas fica o sabor amargo de que o conceito apresentado lá atrás quando o antagonista passa a negociar e rivalizar os bilionários, como se em um novo escalão criminoso, é subaproveitado (a própria insinuação dele se tornar presidente me deixou animado, para logo depois ser descartada). Considerando o rumo que Zdarsky parece dar para a run do Demolidor, não penso que veremos esse tom novamente.
Agora deixando Fisk um pouco de lado, podemos analisar Reinado do Demônio (Devil’s Reign) em termos gerais. A minissérie faz um ensaio político com Luke Cage como concorrente de Fisk e superficialmente aborda a questão de se heróis estão acima da lei que vimos em Quarentena, mas nada disso é exatamente aprofundado, no que acaba sendo um simples evento caótico de ação. Por um lado, Zdarsky não faz nada que não tenhamos visto antes, com heróis do lado errado da mídia e sendo perseguidos pela lei, com tudo acabando em uma grande batalha no meio de Nova York. A narrativa é de diversas maneiras genérica, previsível e sem urgência, com um olhar negativo para o plano mal pensado de Fisk, dando errado desde o início. Por outro lado, dentro desse enlatado, o evento é divertido em suas splash-pages, team-ups e balbúrdia visual. Zdarsky sabe como entreter, nunca perde o ritmo da leitura em um roteiro ligeiro e, mesmo entregando o mais do mesmo, entende como trazer desenvolvimento para seus personagens principais (aqui, no caso, Fisk, Matt e Elektra).
Por mais que o Demolidor não tenha tanto espaço na minissérie, estamos sempre vendo-o pelos olhos de outros personagens ao seu redor. Não só no ódio de Fisk, mas no carinho de Elektra ou na cumplicidade de Foggy. Como tem sido a tônica do sexto volume, o autor homenageia o cânone e celebra a mitologia do herói, com acenos para a fase de Mark Waid com a participação de Homem Púrpura e seus filhos, por exemplo, organizando a trajetória do Demolidor até aqui, valendo destacar sua habilidade em amarrar pontas soltas, como na forma que utiliza Mike na história, um personagem inconveniente que serve, aqui, para dar base a um momento comovente (a perda de um irmão) e o estopim do clímax da história, tirando ele de cena ao mesmo passo que o torna importante para a eterna batalha de Fisk e Matt – o autor ainda, sagazmente, utiliza a morte de Mike, que estava se passando por Matt, como um forma de “libertar” o herói para sua nova jornada. Vejo muito dessa qualidade de celebração em Daredevil: Woman Without Fear, que tem um recorte bonito do relacionamento entre Elektra e o Demolidor, olhando não apenas para traumas do passado, mas para uma nova aliança.
Não considero Reinado do Demônio (Devil’s Reign) um marco no cânone do Homem Sem Medo, mas é um evento interessante como fechamento de alguns arcos e preparações para o que vem aí com a batalha contra A Mão. A narrativa de Zdarsky não oferece grandes novidades ou abordagens inovativas para o tipo de eventos da Marvel, mas o autor acerta todas as notas do entretenimento ligeiro, com uma leitura rápida, muita ação bem desenhada, ótimas participações de outros heróis e vilões desse universo e um clímax que reúne toda a história conturbada de Matt, Fisk e Elektra. E mesmo que Zdarsky recicle muitos elementos de séries passadas, ele se mostra interessado em mudar o status quo, colocando um novo Rei do Crime em Hell’s Kitchen, “aposentando” Fisk de um jeito que raramente vimos o antagonista antes e evoluindo com muita maturidade dramática o romance entre o protagonista e a assassina. A nova jornada dos dois contra A Mão soa como algo diferente, apesar de ser um inimigo conhecido, além de abrir um pouco os horizontes do herói para longe do seu bairro.
Reinado do Demônio (Devil’s Reign) — EUA, dezembro de 2021 a abril de 2022
Contendo: Devil’s Reign #1 a 6, Daredevil: Woman Without Fear #1 a 3, Devil’s Reign: Moon Knight #1, Devil’s Reign: Omega, Devil’s Reign: Spider-Man #1, Devil’s Reign: Winter Soldier #1, Devil’s Reign: Superior Four #1 a 3, Devil’s Reign: Villains For Hire #1 a 3, Devil’s Reign: X-Men #1 a 3, Moon Knight #8, Spider-Woman #18 e 19
No Brasil: Reinado do Demônio (Panini, outubro de 2022)
Roteiro: Chip Zdarsky, Jed MacKay, Karla Pacheco, Clay McLeod Chapman, Gerry Duggan, Zac Thompson, Jackson Lanzing, Collin Kelly, Anthony Piper
Arte: Marco Checchetto, Rafael de Latorre, Federico Sabbatini, Pere Pérez, Manuel Garcia, Victor Nava, Scott Hanna, Lorenzo Ruggiero, Livesday, Andy Owens, Phil Noto, Davide Tinto, Nico Leon, Alessandro Cappuccio, Zé Carlos
Cores: Marcio Menyz, Federico Blee, Lee Loughridge, Frank D’Armata, Dono Sánchez-Almara, Fer Sifuentes-Sujo, Matt Mila, Felipe Sobreiro, Rachele Rosenberg, Erick Arciniega
Letras: Clayton Cowles, Cory Petit, Travis Lanham, Joe Sabino, Ariana Maher, Joe Caramagna
Editoria: Devin Lewis, Nick Lowe, C.B. Cebulski, Danny Khazem, Annalise Bissa, Alanna Smith
Editora: Marvel Comics
589 páginas