Depois de Scavengers Reign, que ganhou o duvidoso título Planeta dos Abutres, em português, o nome de Joseph Bennett ficou gravado em minha mente como alguém cujos trabalhos eu deveria seguir. Mesmo com o inacreditável cancelamento de sua primeira série animada, algo que, confesso, não entendo até hoje, quando Efeitos Colaterais aportou no serviços de streaming, não procurei sequer saber de sua premissa, bastando ver o nome de Bennett ali em destaque, desta vez ao lado de Steve Hely, para eu me animar. No entanto, diferente do que ocorreu com seu trabalho anterior, que me fisgou de imediato pelos visuais hipnotizantes, o início da nova série me deixou desanimado pelo que eu consegui extrair apressadamente da minutagem inicial, ou seja, uma maniqueísta luta do bem contra o mal, o primeiro representado por um hippie simpático barrigudo e barbado que descobre um cogumelo milagroso no Peru que é capaz de curar qualquer coisa e, o segundo, resumido à indústria farmacêutica que, claro, faz de tudo para impedir que algo assim chegue ao conhecimento do público.
No entanto, sou o primeiro a reconhecer que minha percepção original estava equivocada e, na medida em que avançava pela temporada – já houve a renovação para uma segunda, ainda bem -, percebia que ela era muito mais esperta e bem construída do que imaginava. É bem verdade que o protagonista da série, o hippie de bom coração Marshall Cuso (voz de Dave King), é exatamente isso que ele mostra ser desde os primeiros segundos de projeção, ou seja, um homem realmente bom, altruísta e que efetivamente quer ajudar o mundo com sua descoberta, algo que não muda ao longo de toda a narrativa, dando a impressão que não há desenvolvimento no personagem, mas ele existe sim, ainda que tênue. Cuso é um idealista inocente e os 10 episódios da temporada servem para corroer sua inocência e abalar seus ideais, ampliando sua visão de mundo, por assim dizer, quando ele percebe que nem mesmo aqueles que ele considera como amigos merecem sua real e irrestrita confiança. Não é, admito, um desenvolvimento gigantesco, mas eu vejo Cuso como um robusta e centenária árvore solitária em meio à devastação da floresta ao redor. Ele se move, verga com as forças da natureza ao seu redor, mas mantém-se profundamente enraizado e apegado a seus conceitos e isso funciona como a pedra fundamental da narrativa que conta com personagens falhos nos mais variados graus que gravitam ao seu redor.
E todos os personagens coadjuvantes são bem conduzidos pela narrativa. Há Frances Applewhite (Emily Pendergast), a colega de escola de Marshall com quem ele se reconecta e que mantém em segredo, por interesse e ambição próprios, o fato de ela ser a assistente de Rick Kruger (Mike Judge), diretor da empresa farmacêutica Reutical. É muito bem vindo o estabelecimento de uma personagem feminina que primeiro olha para si e que manipula Marshall quando ele lhe revela sobre o milagroso cogumelo azul e que vai em pequenos incrementos percebendo a dimensão do que ela faz, do preço que ela paga por isso, mesmo que o fungo possa ser a cura para sua mãe com Alzheimer. O próprio Rick Kruger, que podemos qualificar como o primeiro vilão da temporada – mas de longe o último e mais de longe ainda o mais sinistro – em sua eterna e desmedida ambição, que choraminga apesar de todo o privilégio de sua posição e que sabe muito bem o que faz e o que deixa de fazer na empresa em que trabalha, merece destaque na trama que faz de basicamente todos os personagens seres presos em um labirinto egoísta.
No lado do governo, há, talvez, a melhor dupla de personagens da série fora Marshall e sua tartaruga peruana Sócrates que ele leva à tiracolo para todos os lugares e que é integral à trama. Falo dos agentes do DEA Copano (Joseph Lee Anderson) e Harrington (Martha Kelly) que, para todos os efeitos, parecem ser os equivalentes dos icônicos Mulder e Scully, de Arquivo X, inclusive com personalidades parecidas, já que Copano é mais maleável e crédulo, enquanto Harrington é mais seguidora de regras e cética. É na relação entre eles que, pelo menos para mim, a maior parte do charme da temporada repousou, mesmo que, inicialmente, eles tenham contribuído bastante para a construção de tensão na narrativa. Aliás, a tensão é um ponto alto nos roteiros, mesmo que o super-cogumelo retire um pouco do perigo real e imediato, pois todos os interessados em suprimir a descoberta de Marshall, incluindo, além dos que citei, o investidor suíço que tem interesse financeiro na Reutical, a diretora de segurança nacional dos EUA que imprime mais fortemente a pegada política da série e aqueles que deveriam ser puros parceiros do protagonista, como sua mentora, seu meio-irmão e os “caipiras” vizinhos da propriedade que, em determinada altura, ele adquire para plantar seu fungo mágico. É como se as paredes fossem se fechando ao redor de Marshall, retirando-lhe as opções, mas, interessante e incongruentemente, com uma abordagem ao mesmo tempo relaxada, no estilo da calma que ele costuma demonstrar na maioria do tempo, e levemente cômica, por vezes irônica e até mesmo sardônica.
O design dos personagens é do tipo ame-o ou odeie-o, já que a escolha estilística foi a do uso de caricaturas muito expressivas, com rostos grandes e em destaque e uma certa dismorfia corporal que salienta características físicas de seus personagens, seja a “barriga de chope” de Marshall, a enorme testa de Rick ou a diminuta boca de Harrington. A animação é de ótima qualidade e particularmente inspirada quando os efeitos colaterais do cogumelo azul – basicamente visões lisérgicas de criaturinhas brancas -, se manifestam e se mostram, não coincidentemente semelhantes em estilo e em seu aspecto transformativo, ao que vemos em Scavengers Reign. Há até uma boa conversa temática entre as séries diria, que pode ganhar ainda mais relevo em uma segunda temporada se houver a exploração desse lado da história.
Efeitos Colaterais pode até começar de maneira mais singela, mas a temporada não demora a acertar o passo e a ganhar a estrutura de outras séries e filmes que lidam com uma grande história de conspiração, paranoia e obsessão que coloca seu protagonista entre paredes que vão aos poucos se fechando ao seu redor, mas sem perder uma veia de humor e ironia, sem deixar de trabalhar cada um de seus personagens e, claro, sem deixar registradas suas críticas econômicas e sociopolíticas. Não é uma série que se aproxime em inventividade da que Bennett colocou no ar anteriormente, mas há muito o que ser apreciado nesse seu segundo esforço criativo e será interessante acompanhar os caminhos que ele pretende seguir.
Efeitos Colaterais (Common Side Effects – EUA, de 02 de fevereiro a 30 de março de 2025)
Criação: Joseph Bennett, Steve Hely
Direção: Camille Bozec, Sean Buckelew, Vincent Tsui
Roteiro: Joseph Bennett, Steve Hely, Emma Barrie, Jean Kyoung Frazier, Dave King, Jon Foor, Karey Dornetto, Dan Schofield, Sophie Kriegel
Elenco (vozes originais): Dave King, Emily Pendergast, Joseph Lee Anderson, Martha Kelly, Mike Judge, Ben Feldman, Danny Huston, Sydney Poitier (Sydney Tamiia Poitier), Sue Rose, Lin Shaye, Shannon Woodward, Christine Ko, Alan Resnick
Duração: 228 min. (10 episódios)