Elas são registradas como casas sobre rodas, casas móveis ou trailers, mas a maioria tem a aparência, estrutura e comodidade de qualquer moradia de um bairro residencial.
Construída em concreto, com cinco quartos, três banheiros, um amplo quintal e uma garagem dupla coberta, a casa em que Ricardo Muñiz vive há 15 anos com a esposa, o filho e a sogra é uma das mais abastadas do parque de trailers Li’l Abner.
Agora ele teme ficar na rua: “Investimos tudo aqui, e não temos condições de pagar o aluguel com os preços atuais”, ele explica à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
Até poucos meses atrás, esta vizinhança de 800 mil metros quadrados no oeste de Miami abrigava cerca de 900 famílias, mais de 3.000 pessoas no total, sendo a maioria delas latino-americanos que vivem nos Estados Unidos há décadas.

Em novembro passado, todos receberam a primeira de várias cartas informando sobre a ordem de despejo: eles devem deixar Li’l Abner até 19 de maio de 2025.
O proprietário do terreno ofereceu uma indenização de US$ 14 mil para aqueles que saíssem antes de fevereiro, US$ 7 mil até abril e US$ 3 mil até maio.
Com a disparada do preço dos aluguéis em Miami, muitas famílias que temem ficar na rua após terem investido suas economias nestas moradias responderam com uma ação que deu início a um processo judicial.
Embora a maioria já tenha ido embora, cerca de 200 famílias decidiram resistir e permanecer em suas casas, pagando aluguel até o fim.
Nos últimos meses, houve protestos, um processo judicial, demolições envolvendo possíveis resíduos tóxicos, saques, dois incêndios e até mortes que os moradores atribuem ao despejo.
A BBC News Mundo visitou Li’l Abner para descobrir o que está por trás da tensa disputa.
Li’l Abner e a bolha em Miami
Fundado em 1968 em Sweetwater, um dos municípios que fazem parte do condado de Miami-Dade, Li’l Abner foi durante décadas uma opção acessível para famílias de baixa e média renda.
O parque de trailers é de propriedade dos Rodriguez, uma família latino-americana que administra o terreno por meio da empresa CREI Holdings.
Os moradores, que pagam cerca de US$ 1.200 por mês para alugar cada lote, dizem que o proprietário original sempre os incentivou a investir em melhorias em suas casas, com a promessa de que poderiam permanecer nelas indefinidamente.
Assim, ao longo dos anos, os inquilinos reformaram e ampliaram as moradias, transformando-as em verdadeiras casas, construídas sobre alicerces de cimento, com sistemas de ar-condicionado, telhados e janelas à prova de furacões, cozinhas modernas, quintal e garagem.

“Mas primeiro o proprietário original morreu, e há dois anos a esposa dele faleceu. Agora o filho dele assumiu, e parece que ele tem outras ambições”, explica Luis de la Paz, de 68 anos, um aposentado que mora aqui há seis anos.
Em novembro de 2024, a CREI Holdings anunciou que toda a área seria desocupada, e estabeleceu o prazo de 19 de maio de 2025 para a desocupação.
A empresa responsável pelo processo, The Urban Group, argumenta que o novo empreendimento vai oferecer “uma comunidade segura e sustentável para as populações mais vulneráveis”, e afirma que o pacote de realocação “excede o que é exigido pela lei estadual”.
Mas a oferta não convenceu os moradores de Li’l Abner: “Eles estão nos despejando para construir algo que chamam de acessível, mas que ninguém aqui vai poder pagar. É uma fraude”, reclama Luis de la Paz.
Ele observa que edifícios anteriores da mesma construtora, como o adjacente Li’l Abner 2, foram construídos com fundos públicos, mas estão cobrando até US$ 2,6 mil de aluguel por um apartamento de dois quartos.
Miami é a cidade onde os preços da moradia mais aumentaram mundialmente, subindo 50% entre o fim de 2019 e 2024, de acordo com o Índice Global da Bolha Imobiliária 2024 do banco de investimento suíço UBS.
“Os preços subiram muito mais do que a renda, levando a desequilíbrios significativos no mercado imobiliário residencial e a um alto risco de bolha”, alertou o UBS.
Outro estudo recente das universidades FAI e FIU também aponta para uma bolha em Miami ao concluir que os preços das moradias estão 35% supervalorizados.
Isso se reflete em aluguéis altíssimos, acima de US$ 2,5 mil por mês para um apartamento familiar nos bairros mais pobres do condado, enquanto nos segmentos de média e alta renda, o valor pode chegar a cinco dígitos.
Portanto, conseguir um novo teto é praticamente inacessível para muitas famílias de baixa e média renda que investiram tudo em suas casas em Li’l Abner.
Luis de la Paz também denuncia a cumplicidade institucional: “Sem o aval do governo da cidade, eles não poderiam nos despejar. O prefeito diz que não pode fazer nada, mas se ele não mudasse o zoneamento, isso não estaria acontecendo.”
Os moradores, que acreditam que o despejo é ilegal, entraram com uma ação coletiva contra a empresa, o município e o condado de Miami-Dade.
A BBC News Mundo enviou várias solicitações de contato ao gabinete do prefeito de Sweetwater, José Díaz, e ao condado de Miami-Dade, mas não obteve resposta.
A casa da Vivian
“Quando cheguei em casa, vi um pedaço de papel colado com fita adesiva. Não conseguia acreditar que o que estava lendo era real, que eu estava sendo despejada”, lembra Vivian Hernández, que mora aqui desde 2008.
Esta mulher cubana faz parte das 200 famílias que ainda vivem em Li’l Abner, resistindo ao despejo a menos de um mês do prazo final; as demais aceitaram os pagamentos e foram embora, embora muitas delas continuem participando do processo judicial em andamento.
Vivian abriu para a BBC News Mundo as portas do que ela chama de seu “trailer”, uma casa de mais de 100 metros quadrados com dois quartos, dois banheiros, uma cozinha reformada e uma sala de estar espaçosa, ladeada por uma varanda que cobre parte do quintal lateral.

A sexagenária cubana conta que chegou aos EUA há 25 anos, onde trabalhou como auditora financeira até que uma doença crônica a fez perder o emprego, e ela se viu à beira da indigência, dormindo no carro ou no apartamento de amigos.
Com o tempo, ela conseguiu se reerguer e, em 2008, juntou US$ 25 mil para comprar esta moradia sobre rodas, e instalá-la no estacionamento de Li’l Abner.
Ao longo dos anos, ela fez melhorias, desde a substituição das janelas até a instalação de um novo teto, sistema de ar-condicionado, cozinha moderna e eletrodomésticos: “Quando parei de registrar, cerca de quatro anos atrás, eu já tinha gasto US$ 230 mil para transformar este trailer na casa que ele é hoje”, afirma.
Ela explica que, devido ao risco de furacões e inundações na área, quase todos os moradores “estão reformando suas moradias móveis, como eu fiz, e transformando-as em casas seguindo os códigos de construção da cidade”.
“Eles querem que eu coloque o trailer no ombro e leve comigo, mas é impossível: todas as casas aqui são móveis no papel, mas na realidade estão fixadas no chão”, protesta.
Para pagar o aluguel mensal de US$ 1.180 pelo terreno, Vivian usa sua pensão por invalidez de US$ 900, e cobre o restante do valor alugando de vez em quando o segundo quarto da casa.
Desde que a contagem regressiva para o despejo começou, ela tem vivido com estresse constante e sofrido ataques de pânico frequentes.
“Meu maior medo é voltar para 2008: morar no meu carro, dormir apavorada em um sofá, me lavar em um banheiro público… Não sei se terei forças desta vez”, ela chora.
O medo de perder tudo
O caso da advogada venezuelana Milagro Pérez é ainda mais gritante: ela comprou a casa dela em Li’l Abner por US$ 100 mil dois meses antes do aviso de despejo.
“Vimos isso como uma oportunidade porque antes pagávamos US$ 3 mil por mês de aluguel, então juntamos todas as nossas economias, esvaziamos os cartões de crédito e investimos tudo nesta casa móvel que já estava aqui”, disse ela à BBC News Mundo.
Milagro mora com a mãe, o marido e três filhos, um dos quais tem síndrome de Asperger. Foi ele quem recebeu o aviso de despejo.
“Entregaram a carta diretamente nas mãos dele, ele leu e começou a gritar: ‘Estão nos expulsando daqui. Temos que sair em janeiro!’ Ele se imaginou dormindo na rua”, recorda.
Quando assinou o contrato, tanto os antigos donos da casa quanto os proprietários de Li’l Abner garantiram que não havia planos de mudar o uso do terreno no curto ou médio prazo.
O advogado David Winker, representante legal dos moradores, confirma que muitos deles, especialmente aqueles que compraram suas casas móveis em 2024, receberam a promessa de estabilidade.
“Quando estes compradores perguntaram qual era o plano de longo prazo, [os proprietários] garantiram que não iriam mudar nada, mas, enquanto isso, estavam solicitando uma mudança na classificação do terreno”, afirma.
Ele enfatiza que aqueles que, como Milagro, compraram suas casas pouco antes do despejo “não são ingênuos. São pessoas que investiram aqui porque disseram a elas que tudo permaneceria igual”.
Ele acrescentou que todos os anos os moradores recebiam um folheto garantindo que nada mudaria. “As pessoas confiaram nas promessas da família”, diz ele.
“O que estão fazendo com a gente é humilhante”, protesta Ricardo Muñiz, técnico de estudos do sono, enquanto oferece à BBC News Mundo um tour pela casa onde sua família mora há 15 anos.
Em um dos cinco quartos, sua sogra, uma paciente terminal, precisa de cuidados constantes: “Ela não sabe de nada, mas não temos para onde levá-la”, lamenta.

A poucos metros dali, Luis Meza também resiste. Ele chegou de Cuba em 1994, e há três décadas vem investindo na casa dele, equipada com todo conforto e materiais de alta qualidade.
No dia em que recebeu o aviso de despejo, a pressão da esposa baixou, e eles precisaram ligar para os serviços de emergência.
“Começar do zero agora, com esses preços? É impossível”, diz ele.
Outros não resistiram. Em nossa caminhada por Li’l Abner, um vizinho nos mostra uma foto de um idoso que morava na frente da casa dele.
“Este senhor na foto era um veterano de guerra. No dia seguinte à notificação deste despejo arbitrário, ele se matou com um tiro na cabeça. Essa foi a solução que ele encontrou”, afirma.
Outra vizinha, Marisol Sánchez, mulher de Diego Valdés, contou ao jornal The Miami Herald que o homem de 76 anos entregou as chaves de casa para receber os US$ 14 mil de indenização em 31 de janeiro. Ele morreu de ataque cardíaco no dia seguinte, o que ela atribui ao impacto emocional do despejo.
Os vizinhos contra-atacam
Os moradores entraram com uma ação coletiva contra a empresa, o município de Sweetwater e o condado de Miami-Dade.
Eles alegam que o processo viola leis específicas que protegem os residentes de casas móveis, que, por regra, devem ser notificados com antecedência, ter o direito preferencial na compra do terreno e receber garantias de realocação, especialmente se a mudança de uso exigir uma reclassificação do terreno.
“Estamos contestando a validade do despejo porque os requisitos da lei da Flórida não foram cumpridos. Eles não são simples inquilinos: são proprietários de moradias que não podem ser movidas. O Estado prevê proteções especiais para eles”, disse David Winker, advogado dos moradores, à BBC News Mundo.
As supostas irregularidades também incluem um aumento de aluguel emitido dentro do prazo proibido por lei e a omissão de estudos obrigatórios de realocação.

O processo também acusa a cidade de Sweetwater e o condado de Miami-Dade de, segundo os autores da ação, facilitar a reclassificação do terreno, sem cumprir sua responsabilidade legal de garantir a realocação de quase 5.000 pessoas afetadas.
A empresa The Urban Group se recusou a fazer comentários à BBC News Mundo sobre o processo judicial em andamento, mas alegou ter oferecido um dos “pacotes de realocação mais generosos da história do condado”, com indenizações de até US$ 14 mil para aqueles que saíram antes de fevereiro.
Também garantiu que os antigos moradores vão ter prioridade para alugar unidades em futuros edifícios residenciais “acessíveis”, embora vários vizinhos tenham assegurado à reportagem que não receberam ofertas realistas de moradia.
Desde que seu fechamento definitivo foi anunciado para 19 de maio, houve protestos contínuos de moradores com cartazes, cânticos e passeatas pacíficas de Li’l Abner até a sede do governo local nas proximidades.
Além disso, nos últimos meses, a área sofreu uma deterioração acelerada: muitas casas foram saqueadas e vandalizadas, com portas arrombadas e janelas quebradas, e houve pelo menos dois incêndios em lotes de terra por motivos desconhecidos.
Sem contar que, depois que as primeiras famílias foram embora, as autoridades começaram a demolir as casas desocupadas, o que gerou uma nova ameaça para os moradores restantes: o amianto.
“Há vizinhos doentes por causa da poeira, e ninguém fez o estudo exigido por lei”, diz o advogado David Winker, que alega que parte do estacionamento foi demolido sem seguir os protocolos ambientais, e que as autoridades multaram o projeto em US$ 108 mil pela presença de amianto.
Além deste material tóxico, paira uma incerteza tensa em Li’l Abner à medida que o prazo final de 19 de maio se aproxima.
Os moradores que ainda resistem podem ser despejados à força se um juiz emitir a ordem, algo que seu advogado diz que não deve acontecer.
Assim, o futuro deste bairro com quase 60 anos de história vai ser decidido em uma disputa que está apenas começando.