Crédito, Arquivo pessoal de José Ignacio Ponce
- Author, Claudia Wallin
- Role, Da BBC News Brasil em Barcelona
Durante nove meses, José Ignacio Ponce viveu em uma velha van de três metros quadrados estacionada em frente ao edifício onde possui um apartamento de três quartos e 102 metros quadrados em Valência, a terceira maior cidade da Espanha.
O motivo: seu imóvel havia sido tomado por uma “inqui-ocupa” – o termo usado pelos espanhóis para designar inquilinos que praticam a nova tática de entrar em um imóvel com um contrato de aluguel, para em seguida deixarem de pagar.
“Minha vida veio abaixo. Tudo o que eu tinha foi parar em um depósito, abandonado. Meus discos, minhas roupas, meus móveis, minhas recordações. E a lei espanhola permite que isso aconteça. É uma loucura”, diz José à BBC News Brasil.
A “inqui-ocupação” é a nova forma de ocupação ilegal de imóveis na Espanha – denuncia a Plataforma dos Afetados pelas Ocupações (PAO), associação que reúne pequenos proprietários atingidos também por ocupações diretas de domicílios em todo o país.
Enquanto as cifras mais recentes do governo dão conta de 15.289 casos de ocupação ilegal de imóveis em 2023, a Plataforma calcula que esse número chega a 80 mil – especialmente devido ao aumento exponencial de casos de “inqui-ocupação”, que não são contabilizados nas estatísticas oficiais.
Na Espanha, como em outros países, o grande número de casas e apartamentos alugados para turistas atendendo a uma demanda crescente, retirou do mercado milhares de imóveis que anteriormente eram destinados a aluguéis residenciais, agravando ainda mais o déficit de moradia.
Mas, segundo juristas, o que diferencia o problema na Espanha do de outros países europeus é que as leis do país são consideradas mais lenientes dificultando a retomada dos imóveis ocupados.
A lei espanhola não permite a retomada à força de um imóvel ocupado: se o proprietário tentar trocar a fechadura da porta, é ele quem pode ser denunciado à polícia pelos invasores.
E pela lei, proprietários de imóveis ocupados são obrigados a continuar a pagar as contas de serviços básicos como luz e gás.
Pelo Código Penal espanhol, trocar a fechadura de uma casa ocupada ou cortar serviços básicos ao imóvel pode ser considerado um delito de coação – segundo o qual o acusado busca restringir a liberdade ou forçar um indivíduo a fazer algo contra a sua vontade.
É um crime que prevê multa e até pena de seis meses a três anos de prisão, e o ocupante do imóvel pode ainda pedir indenização ao proprietário por perdas e danos.
“Basicamente, o que a lei espanhola não permite é que os proprietários façam justiça com as próprias mãos”, diz Josep Riba, advogado criminalista e sócio do escritório de advocacia Cuatrecasas, um dos maiores da Espanha.
Segundo a PAO, o fenômeno tem sido agravado pelo Real Decreto-Lei 11/2020, que no auge da crise provocada pela pandemia de covid-19 determinou a suspensão de despejos de pessoas e famílias em situação de vulnerabilidade e sem alternativa habitacional. Desde 2020, o decreto tem sido renovado ano após ano.
Politização
Para muitos, o problema, que tem base no déficit habitacional, acabou se transformando em bandeira política, com partidos de direita (oposição) acusando o governo de falhar em programas de incentivo à construção de novas residências e de não ter coragem política para mudar a lei.
Pelo seu lado, o governo alega que notícias falsas sobre o tema distorcem a percepção e levam um terço dos espanhóis a terem medo de ter sua casa ocupada, enquanto o problema não chega a afetar diretamente nem 1% das moradias.
Os apoiadores do governo alegam que os números divulgados pela imprensa estão inflados por fake news postadas em redes sociais por grupos de direita para causar um clima de medo, insegurança e desconfiança do governo.
Em discurso no Congresso no ano passado, o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez (do Partido Socialista Operário Espanhol, o PSOE), afirmou que “a disseminação de notícias falsas faz com que 34% dos espanhóis tenham medo de ter sua casa ocupada, quando este problema afeta menos de 0,06% das moradias do país”.
O calvário de José
Disputas políticas à parte, para muitos o problema é real e a luta na Justiça para desocupação dos imóveis pode ser lenta e frustrante.
O calvário de José Ignacio Ponce começou em agosto de 2023, quando a inquilina parou definitivamente de pagar o aluguel após ter pagado apenas uma pequena parcela do valor nos dois meses anteriores.
Funcionário de um estacionamento privado em Valência, José havia adquirido o imóvel com sacrifício: o apartamento havia sido deixado como herança por seus pais, e aos poucos ele comprou a metade que caberia à sua irmã na partilha.
Como na época José vivia com a namorada, ele decidiu alugar o imóvel a fim de obter uma renda extra.
“Os vizinhos do apartamento de cima, que eu conhecia há muitos anos, disseram que a filha deles precisava de um lugar para morar. Pensei então que seria uma boa ideia alugar para uma pessoa com referências. Mas me enganei”, lembra José.
Uma cláusula contratual estabelecia que a inquilina deveria deixar o imóvel após dois meses de inadimplência. Mas em janeiro de 2024, ela continuava no apartamento, com seus dois filhos pequenos. Sem pagar.
“E naquele mês de janeiro, eu me separei de minha namorada. Não tinha para onde ir. Tinha que voltar para a minha casa, mas a inquilina continuava no imóvel”, conta José.
“Eu dizia a ela, ‘se os seus pais vivem em um apartamento de quatro quartos logo no andar de cima do meu imóvel, por que você não se muda para lá? Ou se você não pode pagar aluguel, por que não contata os serviços sociais? Mas não me deixe na rua!’ Tentei dialogar, mas de nada adiantou.”
José nem pensou em trocar a fechadura para recuperar o imóvel à força.
“A inquilina e seu pai certamente gostariam que eu tivesse feito isso. Mas eu sabia que a lei proíbe, e que eles poderiam ter me denunciado à polícia”, diz ele.
Pelo Código Penal espanhol, trocar a fechadura de uma casa ocupada pode ser considerado um delito de coação – que pode resultar em multa ou até pena de seis meses a três anos de prisão para o proprietário.
Foi então que, aos 51 anos, José foi morar dentro da sua van – uma Volkswagen T3 California, de 1989, que ele costumava usar para viajar de férias ou nos finais de semana.
José estacionou o veículo exatamente em frente ao seu edifício, diante da janela do apartamento ocupado pela inquilina. E o exíguo espaço de três metros quadrados, equipado com um pequeno fogão, uma mini geladeira e um banheiro químico, converteu-se em sua nova casa.

Crédito, Arquivo pessoal de José Ignacio Ponce
“Eu tomava banho no trabalho, porque lá há chuveiros para os funcionários”, conta José.
“Minha irmã e outras pessoas da minha famíia me ofereceram abrigo, mas eu não queria. Eu estava com muita raiva, e muito frustrado. E não podia ficar de braços cruzados. Eu precisava fazer alguma coisa.
Ele decidiu então entrar em contato com a Plataforma dos Afetados pelas Ocupações.
“Eles me ajudaram muito a traçar uma estratégia. Porque recuperar um imóvel ocupado na Espanha é como jogar uma partida de xadrez”, define José.
A inquilina, diz ele, já tinha a sua estratégia: declarar-se vulnerável, e aproveitar-se das proteções legais que dificultam ações de despejo contra pessoas em situação de vulnerabilidade.
O que a inquilina não esperava é que José, agora registrado na prefeitura como morador de uma van, também fosse se declarar vulnerável.
“E isso foi um fator-chave para conseguir solucionar o problema. Do contrário, teria demorado dois ou três anos para recuperar meu imóvel”, destaca ele.
Um programa de TV de grande audiência na Espanha foi contatado por José e se interessou pela história.
“Eles chegaram com câmeras. Todas as pessoas do prédio apareceram nas varandas. E o pai da inquilina desceu, para tentar me intimidar. O repórter e o cinegrafista tiveram que conter o homem, que estava muito agressivo”, conta José. A reportagem viralizou, e ele foi contatado por várias outras emissoras.
Na batalha jurídica que se seguiu, José demonstrou que seu salário é baixo:
“Trabalho na bilheteria de um estacionamento, onde também faço pequenos consertos. Também argumentei que o apartamento ocupado pela inquilina fica no quarto andar, e que os pais dela moram no quinto andar, exatamente em cima do meu imóvel.”
Por fim, o juiz deu ganho de causa a José.
“O juiz disse na sentença que quando duas partes são vulneráveis, ganha sempre a parte que é o dono do imóvel. Ele tem prioridade. A inquilina era vulnerável, mas eu também. O juiz também levou em consideração o fato de que os pais da inquilina viviam no andar de cima em um apartamento de quatro quartos”, observa ele.

Crédito, Arquivo pessoal de José Ignacio Ponce
Apesar da ordem judicial para que a inquilina desocupasse o apartamento em 29 de julho passado, ela não saiu do imóvel. E os tribunais entraram em recesso de verão.
“Sofri com as ondas de calor, com 45 graus dentro da van”, revolta-se José.
Quando finalmente a polícia chegou para efetivar a ação de despejo, em 26 de setembro, a inquilina exigiu que ele assinasse um papel responsabilizando-se pelos dois gatos que ela tinha no imóvel. Era outro truque para paralisar o despejo, diz José:
“Muita gente usa esse truque. Sabe por quê? Porque a lei proíbe que se deixe animais abandonados. Se eu me negasse a assinar, o juiz determinaria que a ação de despejo não poderia ser realizada.”
“Quando uma equipe de TV veio filmar a minha volta ao apartamento, a família da inquilina começou a dar fortes golpes no chão do apartamento de cima, para fazer todo o barulho possível e impedir a filmagem. A equipe de TV chegou a se assustar, porque batiam tanto no chão que a casa tremia”, diz ele.
José decidiu nunca mais voltar a viver no apartamento. Ele colocou o imóvel à venda e mudou-se temporariamente para o apartamento de veraneio de uma tia, a 30 quilômetros de Valência, enquanto faz planos para comprar um imóvel em outro lugar.
“Eu não poderia viver tranquilo no apartamento, com essas pessoas vivendo no andar de cima.”
E o drama de José Ignacio ainda não chegaria ao fim: depois de ele ter enfim recuperado a posse do apartamento, Valência foi atingida pela tragédia das inundações devastadoras de outubro passado, que deixaram mais de 200 mortos e um rastro de destruição, lama e barro.
“O depósito onde eu mantinha meus pertences foi totalmente alagado. Perdi quase tudo. Estou tentando recuperar e salvar o pouco que consegui salvar da lama e do barro. E também o que havia dentro da van”, ele diz. Entre os itens que conseguiu salvar, estão algumas peças da sua coleção de camisas de seu time de futebol, o Valência.

Crédito, Arquivo pessoal de José Ignacio Ponce
O caso de José Ignacio Ponce foi amplamente noticiado pela imprensa espanhola e sua saga até a retomada do imóvel se tornou um exemplo clássico que ilustra dificuldades enfrentadas por proprietários em consequência do desequilíbrio no mercado imobiliário do país.
O déficit habitacional tem pressionado o governo espanhol e se tornou bandeira política da oposição na Espanha, com muitos acusando os partidos de direita de tirararem proveito político da situação.