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- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
“Era a escravidão que sustentava a Igreja Católica no Brasil.” Quem diz é o historiador Vitor Hugo Monteiro Franco, pesquisador na Biblioteca Nacional, doutor pela Universidade Federal Fluminense (UFF), autor do livro Escravos da Religião e uma das maiores autoridades sobre o tema no país.
Segundo seus estudos, no auge do século 19, somente a Ordem de São Bento tinha cerca de 4 mil pessoas escravizadas trabalhando em suas unidades espalhadas pelo território, nos atuais Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Bahia.
Mas não é somente isso. Apoiados em argumentos de que era melhor viver sob a escravidão “e se tornar um cristão” do que seguir “no paganismo e ir para o inferno”, religiosos deram um salvo-conduto à elite escravocrata que ao longo de quase 400 anos exploraram mão de obra compulsória no Brasil.
Além disso, eles próprios também se envolveram no emprego desse trabalho e até mesmo no chamado tráfico negreiro que abastecia o mercado.
Em entrevista à BBC News Brasil, Franco dá dois exemplos de como se dava essa relação. O primeiro era uma imiscuidade quase natural: a presença de sacerdotes católicos a bordo das naus. “No nível cotidiano, os navios negreiros deveriam [por regulamentação] ter padres, religiosos que conduziam o batismo desses africanos, no momento de embarque ou já a bordo”, explica ele.
“A ideia era que a escravidão fosse acompanhada da conversão. Então existiam diversas leis do governo português que estabeleciam a necessidade de um acompanhamento de religiosos nos navios negreiros.”
“A Igreja considerava o escravizado, sim, um ser humano com alma. Mas via na escravidão uma maneira dessas populações não cristãs conhecerem o cristianismo e fazerem um caminho de provação e salvarem suas almas. É um posicionamento ambíguo”, afirma à BBC News Brasil o historiador Ítalo Domingos Santirocchi, professor na Universidade Federal do Maranhão.
O outro ponto, na análise do historiador Franco, implicava uma participação “mais firme” do ponto de vista institucional. Havia religiosos atuando no processo de compra e venda dos escravizados, ou seja, naquele que era considerado um comércio de pessoas.
Isso principalmente por conta dos missionários jesuítas, os religiosos da Companhia de Jesus. “Eles tinham presença no continente africano desde o início do processo da expansão portuguesa, no século 15. Estavam, portanto, bem inseridos na lógica africana”, diz.
De acordo com as pesquisas de Franco, no século 18 a possessão jesuítica localizada na região de Luanda, em Angola, “era a maior proprietária de escravizados” daquele país, com um total na casa dos milhares, somadas todas as suas propriedades.
“Essa riqueza era adquirida da relação que os jesuítas tinham com os líderes africanos e os residentes portugueses em Luanda”, explica. “A Companhia de Jesus estava muito bem ajustada a essa dinâmica escravista.”
O interessante era que esses escravizados não ficavam restritos às colônias portuguesas na África. “O colégio jesuíta de Luanda mandava frequentemente escravizados africanos de sua posse para o colégio que ficava no Rio de Janeiro”, conta o historiador.
“Então havia um trânsito direto entre ambos e a transação era feita por navios da própria ordem religiosa. Isso significa que eles nem sequer pagavam os tributos da Coroa, então era um comércio que ocorria à margem do controle real.”
Franco ressalta que essa informação é importante porque, por norma, o tráfico negreiro, por ser então um comércio regular, “gerava dividendos para a Coroa portuguesa” e, mais tarde, para o império brasileiro.
“A transação feita pelos jesuítas passava ao largo e facilitava o acesso dos jesuítas ao comércio negreiro”, afirma.
O pesquisador aponta para um dado que indica o verdadeiro uso que os jesuítas baseados no Rio faziam desses africanos importados paralelamente. Segundo seus levantamentos, o número de escravizados nas fazendas mantidas pelos religiosos no Rio não apresentava aumento considerável, levantando a hipótese de que, na realidade, esse contingente era colocado à venda pelos religiosos para aqueles interessados em adquirir mão de obra negra escravizada.
Em outras palavras, os jesuítas teriam contribuído para alimentar o mercado escravocrata brasileiro — e lucrado com isso, é claro.

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E o mesmo pode ter ocorrido em outras localidades administradas pelos jesuítas no continente. O historiador norte-americano Dauril Alden (1926-2023), da Universidade de Washington, afirmava que a Companhia de Jesus era, no século 18, a instituição que mais tinha escravizados em toda a América.
É importante ressaltar que as ordens religiosas que atualmente operam no Brasil não têm institucionalmente a responsabilidade por atos cometidos neste período da história.
Isso porque, até a Proclamação da República, em 1889, vigorava então o regime do padroado, ou seja, durante o período colonial e, em seguida, do império já independente, a administração de qualquer instituição da Igreja no território estava sob a administração da Coroa — era uma ingerência do poder terreno sobre os assuntos da religião.
“Difícil pensar em Igreja, no caso brasileiro, como uma entidade de espírito corporativo como a gente vê hoje. No período, ela era organicamente integrada ao sistema estatal monárquico”, pontua o historiador Santirocchi.
Conforme enfatiza à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), a Igreja Católica “desde sempre” esteve envolvida no regime escravocrata ocorrido no território brasileiro. “Já no século 16 o trabalho de africanos tornou-se parte da ação religiosa na colônia”, diz ele.
“As maiores concentrações de utilização do trabalho escravo estavam em conventos e demais instalações da Igreja”, afirma.
“Havia engenhos, fazendas, hortas, pomares, pequenas criações e ofícios artesanais para cestaria, cerâmica, pedreiro, marceneiro, lenhador, confecção e reparos de instrumentos e de equipamentos, além de grande variedade de serviços domésticos, de transporte, carregadores e comércio”, acrescenta Martinez.
Ele cita as ordens religiosas dos beneditinos, dos jesuítas, dos carmelitas, dos mercedários e dos franciscanos como as que “recorreram amplamente ao trabalho escravo no atendimento de sua manutenção diária, rendimentos econômicos e rotina disciplinada no cotidiano dos serviços e de atividades religiosas”.
“Antes de condenar a Igreja por isso, é preciso sublinhar que o sistema econômico brasileiro, durante o período colonial e em boa parte do século 19, dependeu da escravidão”, diz à BBC News Brasil o historiador Renato Pinto Venancio, autor de, entre outros livros, Cativo do Reino: a circulação de escravos entre Portugal e o Brasil e professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Então, um clero antiescravista não seria aceito pelas classes dominantes. Antonio Vieira [padre português, da ordem dos jesuítas, que viveu entre 1608 e1697] é exemplo da ambiguidade da relação entre a Igreja e a escravidão.”
Aprisionados pela fé
Entender como o catolicismo fundamentava e autorizava a escravidão ajuda a compreender como esse sistema funcionava e, de certa forma, era moralmente aceitável pela sociedade da época.
A chamada escravidão moderna foi um processo que se intensificou ao mesmo tempo que ocorriam as grandes navegações e o processo de colonização do chamado Novo Mundo. Em 13 de janeiro de 1435, o papa Eugênio 4º (1383-1447) publicou a bula Sicut Dudum, documento no qual proibia, sob pena de excomunhão, que fossem escravizados os nativos das Ilhas Canárias que tivessem se convertido ou estivessem se convertendo ao cristianismo.
No entanto, seu sucessor, papa Nicolau 5º (1397-1455), foi condescendente com a prática. No documento Dum Diversas ele autorizava submeter à “servidão perpétua” todos aqueles pagãos, “inimigos de Cristo”, que se encontrassem nos territórios então recém-descobertos pelos europeus.
O historiador Santirocchi observa que houve alternâncias de bulas chamando a escravidão de “guerra justa”, aceitando-as, com outras nas quais a instituição condenava o trabalho compulsório.
A bula de Nicolau é um dos mais importantes documentos daquele conjunto que ficaria conhecido como Doutrina da Descoberta. Ou seja, uma série de textos da Santa Sé publicados no contexto da expansão marítima europeia em que ficavam “autorizados” aos conquistadores cristãos o controle de territórios e pessoas sob a desculpa de que aquilo implicaria em um esforço de conversão ao cristianismo.
Dum Diversas acabou sendo a carta na manga lançada pelos que se fiavam numa autorização cristã para a prática da servidão. Mesmo que sumos pontífices posteriores emitissem pareceres contrários à escravidão, como o papa Paulo 3º (1468-1549), o papa Urbano 8º (1568-1644) e o papa Gregório 16 (1765-1846).
Este último é o autor da bula In Supremo Apostolatus. “Condenou formalmente a escravidão africana”, ressalta Venancio.

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Muito abaixo dos papas, contudo, padres que atuavam nas colônias se encarregavam de fundamentar a retórica conveniente ao regime que vigorava. É o caso do famoso padre Antônio Vieira (1608-1697), influente orador jesuíta que teve atuação de destaque na América Portuguesa.
Segundo o historiador Franco, as pregações de Vieira reforçavam aquela chancela anteriormente dada pelo papa Nicolau. Na lógica da época, escravização e evangelização eram encarados como “processos indissociáveis”, explica o especialista. “Então, evangelizar os africanos muitas vezes era sinônimo de escravizá-los”, diz.
“Em um dos seus sermões, [padre Antônio Vieira] dizia a uma plateia majoritariamente negra que ‘os pais de vocês viveram nas trevas porque cultuavam os deuses pagãos, eles vão para o inferno; vocês que conhecem a palavra de Deus e estão sendo cristianizados, vocês vão conhecer o paraíso, mas esse paraíso vem através da escravidão'”, conta Franco.
“Então, por mais que a escravidão lhes parecesse uma desgraça, ela tinha de ser vista como ‘um milagre’ porque os trazia ao seio da Igreja Católica, e aqueles que tinham vindo ao Brasil escravizados iriam encontrar, no final, a felicidade da vida eterna.”

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Papel do papa Leão 13
“Era a lógica católica que Vieira, com sua erudição, com o seu trabalho, do ponto de vista eclesiástico, muito bom, acabava condensando. Uma lógica muito tributária do papa Nicolau 5º”, analisa.
Ao longo do século 19, os papas passaram a se preocupar com a escravidão de uma maneira mais humanitária. “Havia um debate antiescravismo [entre os católicos] no Brasil pelo menos desde os anos 1830, embora a Igreja sempre foi dividida e a questão tinha apoiadores e combatentes”, aponta Santirocchi.
Em 1888, o papa Leão 13 (1810-1903) enviou uma condecoração para a princesa Isabel (1846-1921) por conta da assinatura da Lei Áurea.
O historiador lembra que o abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910) havia conseguido uma audiência e, em 10 de fevereiro de 1888, encontrou-se com papa Leão 13 para angariar seu apoio ao fim do regime escravocrata no Brasil.
Uma carta da Igreja sobre o tema foi publicada em 5 de maio daquele ano, oito dias antes da Lei Áurea ser decretada — mas a tradução em português só seria conhecida no Brasil depois da lei nacional. A encíclica era dirigida aos bispos do Brasil. “Pedia apoio à abolição da escravidão”, diz Venancio.
Na opinião de Venancio, as iniciativas católicas contra a escravidão foram “iniciativas tardias”.
“Durante séculos, a Igreja Católica conviveu com a escravização de africanos sem condená-la formalmente. No século 19 essas bulas foram importantes”, comenta.
“As novas posições da Igreja, em geral, são lentas e pontuais. A Igreja comungou da convivência, da conveniência e conivência com senhores de escravos, administradores coloniais, a vigilância da rebelião e a repressão às insurreições negras”, comenta Martinez.
Nas últimas décadas a Igreja se posicionou algumas vezes pedindo desculpas pela sua relação com a escravidão. O mais recente posicionamento acerca do tema data de março de 2023. Em nota oficial, o Vaticano repudiou “os conceitos que não reconhecem os direitos humanos” durante o processo de colonização e, alegando ser “justo reconhecer estes erros” da própria Igreja, declarou “pedir perdão”.
O documento focava especificamente nos povos indígenas, mas também condenou “atos de violência, opressão, injustiça social e escravidão” praticados no período.