Crédito, Gabriel Lain / Sindiserv
- Author, Rute Pina
- Role, Da BBC News Brasil, em São Paulo
A professora distribuía papéis coloridos para uma atividade, limitados a um por aluno, quando a estudante reagiu à proibição de pegar mais uma folha: “É por isso que fazem o que fizeram na João de Zorzi”.
A referência era ao ataque ocorrido em 1º de abril, em que três adolescentes do sétimo ano da Escola Municipal João de Zorzi atacaram pelas costas e a facadas uma professora de inglês, seguindo um plano premeditado pelo Instagram dias antes.
“A violência contra os professores está naturalizada”, diz Juliana, que pediu para ter seu nome real preservado.
Ela trabalhou com a professora que foi esfaqueada na João de Zorzi. Desde a agressão, Juliana diz ter dificuldades em retomar o trabalho em sala de aula.
“Ainda tenho uma mistura de sentimentos que não consegui entender. Mas sei que me sinto muito insegura.”
O medo não é só de Juliana. Assim como ela, professores e alunos de toda a escola ainda tentam entender como seguir em frente diante de uma violência que rompeu o cotidiano escolar.
“Os professores agora evitam escrever no quadro para não ficar de costas”, relatou uma estudante à BBC News Brasil.
Um dia após o ataque, todas as escolas da rede municipal de Caxias do Sul tiveram aulas suspensas. Professores e funcionários foram acolhidos por psicólogos e equipes da Secretaria Municipal de Educação. A escola reabriu dois dias após o ataque, em 3 de abril.
Apesar do retorno rápido à rotina, a comunidade escolar ainda digeria o trauma. Na semana seguinte ao ataque, pais cogitavam transferir os filhos da João de Zorzi para outros colégios, e professores também se questionavam se ficariam ali.
“Os professores ainda estavam ganhando confiança novamente”, afirma o vice-diretor da escola, Gabriel Jean Boff. “Sempre vai ter um sentimento diferente, em especial para quem estava aqui no dia do ataque.”
A mãe de uma aluna do quarto ano diz que passou a acompanhar a filha até a escola todos os dias — antes, fazia isso só de vez em quando.
“Ela ficou medo e não entendeu bem o que aconteceu”, explica a mãe, que pediu para não ser identificada.
“Tivemos que explicar que ocorreu na sala dos alunos mais velhos e que algumas crianças podem ser más. Meu marido e eu cogitamos tirá-la da escola, mas ela disse que queria continuar para estar com as amigas.”

Crédito, Gabriel Lain / Sindiserv
A secretária municipal de Educação, Marta Fattori, disse à BBC News Brasil que o patrulhamento foi reforçado na João de Zorzi e em outras unidades da região.
Também estão sendo discutidas medidas como colocar portões com campainha para controlar acesso de estranhos e botões de pânico que poderiam ser acionados em ataques e outras situações de emergência em escolas da rede. Na João de Zorzi, isso já foi feito.
Fattori também afirmou que o município retomou o programa Escolas de Paz, que prevê uma série de iniciativas para combater a violência nas salas de aula.
Após o ataque do início de abril, diz a secretária, o programa foi reforçado com a presença de equipes itinerantes nas escolas e implementação de projetos de mediação de conflitos.
O dia seguinte, dois anos antes
A 980 km de Caxias do Sul, a Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, ainda vive o luto por um ataque em 2023.
As manhãs agitadas eram parte da rotina da escola, na época com mais de 300 alunos de ensino fundamental. Mas, em 27 de março daquele ano, o dia fugiu do normal.
“Foi algo fora da rotina”, lembra Cinthia da Silva Barbosa, que era professora de educação física na escola localizada na Vila Sônia, Zona Oeste de São Paulo. “Não era o barulho habitual de uma escola viva, com sons de crianças brincando e correndo. Era um som urgente, desorganizado.”
Naquele dia, enquanto dava aula, Cinthia viu que crianças de outras turmas desciam correndo a escada, em pânico. A professora pediu que seus alunos permanecessem na sala de aula e subiu no fluxo contrário.
“Encontrei com a coordenadora. Não lembro a sequência de palavras, mas lembro dela dizer: ‘Ele está armado. Cuidado’.”
Em uma das salas, viu uma professora caída no chão e outra colega sendo esfaqueada. Sem pensar muito, Cinthia imobilizou por trás o autor do ataque, um estudante de 13 anos. “Naquele momento, não ouvia mais nada. Só agi.”
A professora Elisabeth Tenreiro, de 71 anos, morreu no local. O aluno também feriu mais dois colegas e outras três professoras.
Ele vestia uma máscara de caveira e havia avisado nas redes sociais que estava “esperando por esse momento a vida inteira”. Na mochila, levou uma faca e a intenção declarada de matar o maior número possível de pessoas.
O agressor foi apreendido e levado para a Fundação Casa, em São Paulo.

Crédito, Sebastiao Moreira/EFE
Nos dias que seguiram o ataque, a escola foi o epicentro de uma comoção nacional. Recebeu psicólogos, voluntários — de ONGs a igrejas — e visitas de políticos, como o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Seguindo recomendações de especialistas, a escola permaneceu fechada por 14 dias. Neste período, foi reformada e pintada — uma ação encorajada por pesquisadores no tema para ressignificar o espaço. Houve rodas de conversa, oficinas lúdicas, sessões de acolhimento. Até a merenda escolar foi diferente.
“Muitos voluntários foram nos acolheram, além dos alunos. Isso foi o que me deu mais força para continuar ali”, diz Cinthia.
As marcas do trauma
A professora Ana Clélia Rosa, de 60 anos, foi uma das vítimas do ataque. “Não tem como esquecer. Nesses dois anos, essas lembranças vão e voltam”, afirma.
Ela lembra que, ao tentar pedir ajuda para a colega Elisabeth, deu de frente com o agressor. “Só lembro da faca levantando. Caí e comecei a me defender como podia. Foram menos de dois minutos, mas pareceram uma eternidade.”
Antes de ser levada para a cirurgia, ainda no hospital, recebeu a visita do vice-governador do Estado, Felicio Ramuth (PSD). “Ele me perguntou como eu estava e se voltaria a dar aulas. Respondi que sim, assim que me recuperasse.”
Duas semanas depois, ela voltou à mesma sala onde havia sido atacada. “Cumprimentei meus alunos e vi na porta uma mancha de sangue. Por mais que tivessem limpado, você ainda via uma sombra mais escura. Isso foi o mais difícil de tudo, foi um grande descaso.”

Crédito, Carla Carniel/Reuters
Casos de violência extrema em escolas exigem protocolos específicos de acolhimento, pontua a psicóloga Elaine Alves, especialista em luto pela Universidade de São Paulo (USP), onde coordena o Núcleo de Intervenção Psicológica em Emergências e Desastres (Niped).
O atendimento após uma tragédia deve considerar o tipo de evento. “Não é a mesma abordagem para um suicídio, um homicídio entre estudantes ou um ataque com agressor ativo. Cada caso exige um plano de contingência próprio”, afirma.
No caso dos chamados ataques ativos, quando o agressor tem o objetivo de matar o maior número de pessoas sem especificar alvos, a orientação é que a escola feche por um período para conseguir se reorganizar.
“É necessário cuidar dos feridos, lidar com a morte e, ao mesmo tempo, planejar o dia seguinte”, pontua a psicóloga, que atuou no Thomazia Montoro após o ataque de 2023.
Ela afirma que o atendimento psicológico precisa ser imediato, contínuo e articulado com profissionais de diferentes áreas — saúde, educação e assistência social.
“Nos primeiros dias, o ideal é ter profissionais circulando pela escola, fazendo atendimentos móveis, rodas de conversa, acolhimento no pátio”, explica.
Os efeitos do trauma são duradouros, pontua Alves: “O estresse pós-traumático pode surgir 30 dias depois ou cinco anos depois. Por isso, a rede pública precisa garantir atendimento psicológico de longo prazo — algo que hoje, infelizmente, não se consegue fazer”.
Andrea Oliveira, que era secretária do Thomazia Montoro e estava trabalhando na escola no momento do ataque, carregou um trauma consigo por causa do que aconteceu.
“Pensei que encontraria um adolescente perturbado, arrependido. Mas não. Ele entrou com o peito estufado, sem hesitação”, diz ela, sobre o momento em que o agressor foi levado pela polícia.
Nas semanas seguintes, a secretária cuidou de tarefas burocráticas: receber visitas e voluntários, fazer ligações de checagem às famílias dos estudantes. “Nunca trabalhei tanto quanto naquele período.”
Andrea só começou a sentir os primeiros sintomas de estresse pós-traumático meses depois. O olhar do adolescente passou a ser uma cena recorrente em seus sonhos.
“Comecei com dores no corpo, depois vieram os pesadelos, a hipersensibilidade a sons. Hoje, qualquer barulho fora do comum de uma escola me assusta”, conta.
Hoje, ela não trabalha mais na Thomazia Montoro, é merendeira em outra escola. Em julho de 2024, mais de um ano após o ataque, passou a ser acompanhada por psicólogos.
A experiência também transformou Cinthia Barbosa. “Acho que cada um tem uma resposta diferente”, diz. Depois do episódio, a professora começou a cursar faculdade de direito e a pesquisar sobre prevenção a ataques escolares.
Em suas aulas de educação física, Cinthia passou a estimular ainda mais as vivências coletivas: jogos e atividades em grupo. “A escola precisa ser um espaço de socialização. Isolamento é sempre um sinal de alerta”, afirma.
“Não dá para traçar um perfil de aluno agressor. O que dá para fazer é criar vínculos, escutar, observar.”
‘Escola precisa ser escutada e cuidada’
O esforço de Cinthia para entender e buscar formas de evitar novos ataques se reflete em um movimento mais amplo. Pesquisadores têm tentado compreender por que esse tipo de violência tem crescido nas escolas brasileiras.
O país registrou ao menos 42 ataques a escolas entre 2001 e 2024 — mais da metade deles concentrados entre 2022 e 2024.
Os dados são do relatório Ataques de Violência Extrema às Escolas: Causas e Caminhos — Atualização, publicado pelo D3e – Dados para um Debate Democrático na Educação, com apoio da B3 Social e da Fundação José Luiz Setúbal.
O levantamento mostra que, entre 2001 e o fim do ano passado, 44 pessoas foram mortas em ataques a escolas no Brasil. Outras 113 ficaram feridas. Mais da metade dos ataques no país foi executada com facas, machados ou coquetéis molotov.
A pesquisadora Cléo Garcia participou do estudo e da elaboração de uma cartilha com orientações para escolas e gestores, em parceria com a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), que inclui um passo a passo de ações a serem tomadas após um ataque.
O documento orienta sobre como organizar o retorno às aulas de maneira segura, escutando ativamente a comunidade escolar a respeito deste momento, e estratégias de cuidado com todos os seus integrantes.
Garcia diz que esse guia pode ajudar redes escolares que ainda não têm planos próprios de contingência para situações deste tipo.
“Fechar por um dia e reabrir como se nada tivesse acontecido não dá conta do impacto. A escola inteira precisa ser escutada e cuidada”, afirma.
Ela também destaca a importância da comunicação clara e transparente das autoridades envolvidas com a comunidade escolar e com a imprensa, como forma de combater rumores e boatos.
“Às vezes, os gestores não estão preparados para isso, mas é fundamental que alguém possa falar em nome da escola, com orientação adequada, para prestar esclarecimentos e garantir a confiança de todos sobre o que está sendo feito.”
Ela também defende que a imprensa atue com responsabilidade para evitar efeito contágio — ou seja, a propagação dos ataques por influência.
“É preciso evitar dar nome e rosto aos autores, não divulgar detalhes descontextualizados que possam estimular reprodução de condutas violentas”, afirma. “Esses adolescentes, em muitos casos, desejam a visibilidade.”
Em Caxias do Sul, a relação com a imprensa foi conturbada desde o primeiro dia. De fake news a informações incompletas ou descontextualizadas, sites locais chegaram a publicar foto de um dos adolescentes envolvidos no ataque e a veicular informações falsas sobre a professora agredida.
A BBC News Brasil tentou entrevistar a professora atacada e os familiares dos estudantes envolvidos no ataque — de ambos os lados, o assédio da imprensa foi parte da justificativa para declinar os pedidos da reportagem.
Escola Segura
Em resposta ao aumento de ataques a escolas em 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública lançou naquele ano a Operação Escola Segura. Em parceria com a organização SaferNet Brasil, foi criado um canal exclusivo para receber denúncias de ameaças e episódios de violência nas instituições de ensino.
Entre abril de 2023 e março de 2025, houve 11.971 denúncias. Só no primeiro mês de funcionamento, foram 8,6 mil — de um total de quase 9,8 mil ao longo de 2023 inteiro.
Para Cléo Garcia, o volume expressivo reflete, em parte, a ausência até então de um sistema nacional unificado para esse tipo de queixa.
Em 2024, o número caiu drasticamente: 2.081 denúncias, uma redução de 78,6% em comparação ao primeiro ano de funcionamento do canal. Neste ano, até o dia 31 de março, foram 138 queixas.
A queda no número de ataques registrados em 2024, na avaliação da especialista, é um efeito do trabalho de forças de segurança.
“Houve monitoramento de ameaças e ações de inteligência, inclusive em parceria com órgãos dos EUA. Isso impediu novos ataques. Mas as ameaças seguem em alta, e muitas escolas não sabem como reagir”, diz.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública atribui a queda nas denúncias de ameaças a escolas a um conjunto de ações, como o reforço na prevenção, o monitoramento de ameaças na internet e campanhas de conscientização.
Segundo a pasta, todas as denúncias recebidas desde a criação do canal são analisadas individualmente. Após avaliação do conteúdo — com base na gravidade e urgência das informações — os casos com indícios de crime são encaminhados às autoridades policiais locais.
Os dados também servem de base para a formulação de políticas públicas voltadas à prevenção e ao enfrentamento da violência nas escolas, informou o Ministério.
Para Garcia, é essencial garantir atendimento psicológico contínuo, canais anônimos para denúncias e protocolos de convivência adaptados à realidade de cada escola.
“O trauma de um ataque não se resolve em uma semana. Há estudos que mostram que os efeitos podem durar mais de três anos”, diz.
“A escola sofre um grande abalo, mas não é só ela: toda a comunidade escolar, os vizinhos, os parentes das crianças e os colegas dos professores também são afetados.”
‘Não tem como dizer que já passou’
“Estamos sempre com a antena ligada”, diz a professora de inglês Monique Queiroz. Ela era vice-diretora da escola Thomazia Montoro no momento do atentado, em março de 2023.
“Não tem como dizer ‘já passou’. Cada pessoa reagiu de um jeito, mas acho que 90% da comunidade escolar ficou adoecida — funcionários, alunos e as famílias também”, afirma a professora.
“Qualquer barulho, grito ou estalo assusta. A escola vive em estado de alerta permanente.”
Ela defende a presença fixa de profissionais de saúde mental na escola, com atendimentos individualizados. “Os psicólogos atuam em grupo, mas a dor de cada um é diferente. Precisamos de atendimento contínuo, tanto para casos de trauma quanto para prevenção.”
A escola, diz a professora, recebeu apoio de voluntários e equipes de psicólogos até o final do ano letivo de 2023.
Procurada pela BBC News Brasil, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo afirmou que acompanha a rotina das escolas estaduais por meio do programa Conviva-SP, que atua na prevenção da violência, mediação de conflitos e apoio à saúde mental.
A rede, segundo a pasta, conta com mais de 660 psicólogos e quase 700 professores orientadores de convivência, além de mil vigilantes contratados em 2023 para atuar em unidades escolares selecionadas conforme critérios de vulnerabilidade.
Entre as medidas de segurança, a pasta destaca o Protocolo Conviva 179, com orientações para lidar com situações de risco, e a parceria com a Secretaria de Segurança Pública para garantir reforço de policiais nas escolas.
Monique deu aulas na escola Thomazia Montoro até o fim do ano letivo de 2024. Ela diz que a decisão de deixar a escola foi motivada por esgotamento emocional. “Precisava encerrar um ciclo. Eu ia ao trabalho triste. O ambiente estava adoecido, e eu não estava bem.”
A psicóloga Elaine Alves questiona a ideia de “voltar ao normal”. “Há uma tendência humana de querer esquecer, mas isso não vai acontecer. Essa escola sempre será marcada pelo ataque. E isso precisa ser incorporado.”
Ela defende que escolas criem formas de simbolizar o episódio, como a construção de memoriais com participação da comunidade.
A psicóloga cita o memorial criado em homenagem às vítimas do massacre da escola Tasso da Silveira, em Realengo, no Rio de Janeiro. Em 2011, um ataque matou 12 crianças e feriu outras 10.
“Não é para glorificar a tragédia, mas para lembrar e evitar que se repita.”