- Author, BBC World Service*
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“Se tivessem me dito, quando eu era criança, que minha vida seria ligada a de um pinguim, eu não teria me surpreendido tanto. Afinal, minha mãe criou três jacarés na nossa casa em Esher, na Inglaterra, até que eles ficaram grandes demais e perigosos para viver em uma cidade tão pequena.”
Essas palavras foram escritas pelo inglês Tom Michell, décadas depois de fazer de um pinguim um dos seus melhores amigos.
A mãe de Tom não planejou ter jacarés em casa. Ela viveu até os 16 anos em Cingapura e, antes de se mudar para Inglaterra, sua melhor amiga, em uma despedida cheia de lágrimas, lhe deu três ovos como lembrança. Durante a viagem de navio, como era de se esperar, os filhotes nasceram.
O que aconteceu com Tom também não foi planejado.
Ele sempre teve um espírito aventureiro. Seus pais eram imigrantes, e ele tinha parentes pelo mundo todo. Desde pequeno, ouviu histórias sobre lugares distantes.
“Sempre gostei de viajar e conhecer novos lugares. Mas o lugar onde eu realmente queria ir era a América do Sul, porque pra mim era uma verdadeira incógnita”, conta.
“Aos 12 anos consegui um dicionário de espanhol e comecei a aprender algumas palavras, já pensando que, quando surgisse uma oportunidade, eu iria explorar a América do Sul”, acrescentou.
Essa oportunidade chegou no início da década de 1970, quando ele tinha pouco mais de 20 anos.
“Eu estava lendo o jornal Times e vi um anúncio dizendo que o internato de St. George, na Argentina, precisava de um professor. Pensei: ‘perfeito!’ e escrevi a eles dizendo que eu já estava a caminho e que não precisavam mais procurar alguém para a vaga”, lembra.
“Quando cheguei, o país estava passando por um momento terrível. A inflação era de 100% ao mês. O diretor da escola me disse: ‘Não faço ideia de quanto vai valer o seu salário, mas enquanto você estiver aqui, você vai ter comida e lugar para morar, e se ficar por um ano, eu pago as passagens de ida e volta’.”
A Argentina estava mergulhada no caos, com a presidente Isabel Perón lutando para se manter no poder e a economia em colapso. No dia 24 de março de 1976, os militares deram um golpe de Estado e tomaram o controle do país.
Apesar da violência, Tom não desanimou. Sentia que estava presenciando algo importante. Além disso, queria conhecer o resto da América do Sul.
Um encontro inesperado
Em uma de suas viagens, Tom decidiu conhecer o Paraguai. Na volta, parou no balneário de Punta del Este, no Uruguai, para visitar um amigo. Lá, se deparou com uma cena assustadora ao sair para caminhar na praia: pinguins mortos cobertos de piche.
“Quanto mais eu caminhava, mais pinguins mortos eu via. Era um cenário devastador”, relata.
“E enquanto eu me perguntava como a humanidade podia fazer aquilo, vi um pinguim se mexer. A cabeça tremia e as asas batiam lentamente. Entre milhares de pinguins mortos, aquele estava vivo.”
“Cheguei um pouco mais perto e vi o pinguim se levantar. Dei uns passos para trás, porque não sabia o que fazer: ele batia na altura do meu joelho e aquilo me deu medo.”
Tom pensou que se conseguisse capturá-lo, talvez pudesse ajudá-lo. Então, pegou uma rede de pesca e a soltou sobre a cabeça do pinguim.
Decidiu levá-lo até o apartamento onde estava, limpá-lo, e depois soltá-lo em uma praia sem petróleo e piche.
Com muito esforço, Tom conseguiu limpar o pinguim usando manteiga, azeite, shampoo e detergente.
Mas, para sua surpresa, ele não conseguiu concluir a segunda parte do plano.
“Fui até a praia para soltá-lo e o coloquei perto da água, esperando que ele fosse nadar para longe, mas isso não aconteceu. Ele ficou parado, me olhando. Eu não sabia o que fazer”, contou o professor.
“Vi então umas pedras onde as ondas batiam e pensei que se colocasse o pinguim lá, quando a água viesse, ele ia sair nadando. Quando a primeira onda veio, ele desapareceu.”

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Não demorou muito para Tom ver o pinguim saindo da água. “Ele parou do meu lado e me olhou como se estivesse dizendo: ‘porque você está me mandando de volta para o oceano se acabamos de nos conhecer e nos tornamos amigos?’.”
O professor começou a pensar se tinha feito algo errado. Se, talvez, ao lavar o pinguim com detergente, teria tirado a impermeabilidade natural das penas.
“Mas eu sabia que se não tivesse limpado, ele teria feito como os outros pinguins e se limpado com o bico. Isso faria com que ele engolisse grandes quantidades de piche, o que poderia matá-lo.”
Em uma segunda tentativa, Tom colocou o pinguim novamente nas pedras. Dessa vez, decidiu se afastar para que o animal não o encontrasse.
Mas, ao tentar correr, caiu na água e, ao sair, “lá estava o pinguim do meu lado”.
Tom tentou ir embora, mas o pinguim o seguiu como se fosse algo natural. E aí não teve outra escolha a não ser levar o pinguim.
“Naquele momento, ele se tornou meu pinguim. Decidi que iria levá-lo para a Argentina, deixá-lo lá se recuperando e, depois, devolvê-lo ao mar”, conta, lembrando como escolheu o nome do novo amigo.
“Eu estava em um restaurante lendo ‘Juan Salvador Gaviota’ para aprender espanhol, e me veio a mente que o pinguim ia ter um nome: Juan Salvador.”
De volta à Argentina

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Tom chegou à fronteira do Uruguai com a Argentina com a ideia de passar despercebido, “mas justamente naquele momento, Juan Salvador fez barulho”.
“Me levaram para uma sala e me disseram que era ilegal importar animais exóticos. Eu disse que não era exótico, era apenas uma ave, e era argentina, que nadava sem se importar com as fronteiras.”
Depois de muitas perguntas, o agente da alfândega acabou os deixando passar. Dali, eles seguiram para a escola St. George, que se tornaria a casa de Juan Salvador.
“Quando chegamos, não contei nada a ninguém. Minha principal preocupação era que ele não tinha comido nada desde que o encontrei no mar, e eu não tinha ideia de quanto tempo pinguins poderiam sobreviver sem se alimentar.”
Como forma de resolver o problema, Tom comprou um quilo de peixe e colocou na frente de Juan Salvador, que ignorou. Ele tentou então uma outra estratégia: abrir o bico e colocar um peixe dentro. Mas o pinguim cuspiu de volta.
Depois de três tentativas, Tom finalmente conseguiu fazer o animal engolir o peixe, “e depois disso, ele devorou tudo que eu tinha comprado”.

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No dia seguinte, o professor procurou uma das pessoas que mais confiava: a governanta do internato, Maria.
“Eu a considerava como minha avó argentina. Contei a ela que tinha um pinguim e precisava de ajuda. Ela ficou horrorizada”, conta Tom, destacando que, mesmo assim, Maria foi até o apartamento, e assim que viu Juan Salvador, “teve o coração roubado por ele”.
Quando os alunos voltaram para a escola, eles também se apaixonaram por Juan Salvador.
“No início, achei que teria que limitar o número de crianças que o visitavam, mas depois ficou claro que ele não se importava em ter 30 ou 40 pessoas ao redor.”
Os colegas de trabalho de Tom também ficaram sabendo do pinguim, para quem ele dizia que a intenção era levá-lo para o zoológico.
Um confidente
Encantados com o pinguim, os funcionários e alunos da escola ajudavam a alimentar e a cuidar de Juan Salvador. Foi quando Tom percebeu que algo extraordinário estava acontecendo.
O internato tinha um terraço, onde o pinguim passava grande parte do tempo. Da janela do quarto, Tom conseguia ouvir tudo o que acontecia do lado de fora.
“Descobri que as pessoas iam conversar com Juan Salvador e desabafar sobre coisas que estavam passando. Escutei muitas conversas de crianças e adultos sobre situações que os afligiam.”
E assim o pinguim se tornou um grande confidente.
Alguns alunos de Tom, como um boliviano bem tímido chamado Diego Garcia, tinham dificuldade de se adaptar àquele ambiente.
“Internatos são ótimos para algumas crianças, mas não para todas. Diego e alguns de seus amigos visitavam Juan Salvador praticamente todos os dias, porque quando estavam com ele, não importava seu desempenho acadêmico.”
O St. George tinha uma piscina que, por não ter um sistema de filtração, precisava ser esvaziada e enchida a cada três semanas.
Um dia antes da limpeza, Tom teve a ideia de colocar Juan Salvador para nadar nela, e pediu para Diego e seus amigos buscarem o pinguim.
“Ele olhou para água, se atirou na piscina e começou a nadar e a nadar. Em seguida, Diego perguntou: ‘Posso nadar com ele?’ Eu disse que sim e ele se jogou na piscina também”, acrescentou.
Tom conta que Diego e o Juan Salvador nadavam de forma sincronizada, como se estivessem coreografados. “Fiquei deslumbrado.”

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A partir daquele dia, a timidez de Diego sumiu e ele passou a olhar os colegas nos olhos.
“Ele tinha ganhado o respeito dos colegas e, pouco depois, foi eleito para fazer parte do time de natação do colégio. Ganhou todas as competições e bateu quase todos os recordes. Todos queriam ser amigos dele e, com o tempo, ele passou a ter excelentes notas acadêmicas.”
O fim da vida de Juan Salvador
Todos, inclusive Juan Salvador, estavam felizes, mas Tom tinha dúvidas se aquela situação era a melhor para o pinguim.
Ele estava bem e tinha muita companhia. Era o mascote da equipe de rugby da escola, e corria para cima e para baixo como se não quisesse perder nenhum lance dos jogos. E sempre tinha alguém querendo passear com ele pelos campos do colégio.
“Mas pensei que deveria levá-lo ao zoológico, onde ele seria devidamente cuidado e estaria em contato com outros animais da mesma espécie”, disse Tom.
No entanto, quando foi ao zoológico, ele encontrou um lugar cheio de pinguins tristes.
As aves andavam em círculos, desanimadas, não pareciam estar muito interessadas em comer, algo bem diferente do comportamento de Juan Salvador, que, quando alguém chegava em casa, “se apressava para dar boas-vindas, como se fosse um velho amigo”.
Os funcionários do zoológico disseram que a rotina que os pinguins tinham era ‘perfeitamente apropriada’, mas Tom sentia que Juan Salvador era mais feliz com ele.
Assim, ele continuou vivendo no internato, rodeado de carinho e atenção, até que, cerca de um ano depois, morreu.
Os pinguins vivem cerca de 20 anos. Não se sabe quantos anos tinha Juan Salvador, mas não era jovem.
“Me cortou o coração. Inclusive hoje, 50 anos depois, meu coração ainda dói”, afirma o professor.
O que Tom não imaginava era o efeito que Juan Salvador teria no resto da sua vida.
Uma história digna de filme

Tom contou a história de Juan Salvador para uma garota no primeiro encontro – e eles acabaram se casando.
Também contou aos filhos e netos, que o incentivaram a escrever os relatos para que eles pudessem ler.
Anos depois, amigos e familiares sugeriram que ele publicasse os relatos por meio da plataforma de livros eletrônicos Kindle.
Até que um dia, Tom recebeu um e-mail da editora Penguin dizendo que queriam publicar a história. O livro The Penguin Lessons (“As lições de um pinguim”, na tradução livre para o português) foi publicado em 2016.
Pouco tempo depois, ele recebeu um email informando que o ator Bill Nighy queria narrar o audiolivro. “Quando um ator tão famoso como ele quer fazer algo, você não diz não!”.
Mais tarde, durante a pandemia de Covid-19, ele recebeu uma outra mensagem da Penguin.
“Diziam que tinham recebido um email da Coreia do Sul. Queriam incluir o livro no Currículo Nacional de Inglês, para jovens de 14 a 16 anos.”
Tom não conseguia imaginar algo maior do que aquilo.
“Achei que seria o auge da história de Juan Salvador, até que recebi outra mensagem da Penguin Books dizendo que, durante o confinamento, o ator Steve Coogan leu meu livro e perguntou ao roteirista Jeff Pope se poderia adaptar a história para o cinema”, conta.
E, assim, o filme “The Penguin Lessons” fez com que a história de Juan Salvador chegasse às telas de todas as partes do mundo.
*Essa história faz parte da série “Outlook”, da BBC World Service.