Em um país como o Brasil, em que a televisão cumpriu por décadas a função de espinha dorsal da coesão simbólica nacional — papel ocupado em outras geografias pela literatura ou pelas artes plásticas —, a migração do desejo de fama para os territórios instáveis da viralização digital não é um fenômeno apenas cultural, mas também político, afetivo e estrutural. Vivemos uma mutação epocal no imaginário da visibilidade.
A figura de Carlinhos Maia, surgido de uma vila pobre no sertão alagoano, viralizou quando o influenciador produziu vídeos curtos sobre a vida cotidiana local, encenando e amplificando as idiossincrasias de sua comunidade. Seu sucesso meteórico serviu de modelo para um novo tipo de empreendedorismo simbólico: a performance da pobreza para fins de consumo. Pobres, camponeses, indígenas e habitantes de periferias de todo o país passaram a criar versões de si mesmos, encenando seu cotidiano de forma cômica, afetada ou grotesca — com a esperança de repetir a “exceção” Maia. A própria exceção, entretanto, foi rapidamente absorvida e instrumentalizada pelas engrenagens do capitalismo da atenção.
Carlinhos passou a exercer um papel quase imperial no ecossistema da viralização ao criar o reality Rancho do Carlinhos, veiculado nos stories de seu perfil no Instagram. O formato de estética caótica e improvisada consiste na seleção de “personagens reais” que viralizaram por vídeos considerados bizarros, engraçados ou “espontaneamente autênticos”. Convidados a participar do “Rancho”, esses personagens reproduzem em série as mesmas performances que os tornaram visíveis. Estamos diante de uma nova forma de freak show, digital e monetizado, na qual a miséria não é denunciada, mas estetizada e vendida.
Esse fenômeno aciona o que a teoria do caos chama de atrator estranho — conceito da matemática que designa um padrão que surge do comportamento aparentemente caótico de um sistema. Na cultura digital, esse “atrator estranho” é o grotesco: aquilo que perturba, que diverte e assusta ao mesmo tempo, que convoca olhares de espanto e compartilhamentos impulsivos. Umberto Eco, em História da feiúra, mostra como o grotesco sempre ocupou lugar central na imaginação humana: do medieval ao contemporâneo, nossa fascinação pelo monstruoso, pelo disforme, pelo “fora da norma” nunca cessou. O que muda é o regime de visibilidade: antes eram os circos de horrores — agora são os algoritmos das redes.
Na superfície, poderíamos interpretar esse fenômeno como um sinal de democratização da fama. Afinal, pobres e marginalizados que jamais teriam acesso aos palcos da televisão e do cinema agora podem se tornar “virais”. Mas essa leitura é apressada e ilusória. Como já advertia Lipovetsky em O império do efêmero, particularmente no capítulo “Cultura à moda mídia”, a modernidade produziu uma forma de visibilidade de massas marcada pela leveza, pela frivolidade e pela obsolescência rápida. Ele descreve como os reality shows promovem uma “democratização do Olimpo”: qualquer um pode ser estrela — por um instante.
A viralização digital não é uma abertura do espaço público, mas sua simulação. O que se vê é uma sujeição disfarçada de autonomia: o indivíduo acredita ser livre ao performar a própria intimidade nas redes, mas está, de fato, obedecendo a um sistema de valores e visibilidade ditado pelas plataformas, pelos algoritmos e pelo apetite por conteúdo do público consumidor. É a “produção de si como mercadoria” elevada ao paroxismo. E, ao contrário da promessa de que “todos podem ser famosos”, o que ocorre é a reiteração de exceções: o sucesso de um Carlinhos Maia não é reprodutível em massa — mas serve para alimentar o mito de que seria.
Enquanto isso, vemos a precarização subjetiva avançar. Jovens deixam de sonhar com profissões de Estado ou carreiras de formação sólida. O novo desejo é “ser influencer”, “viralizar”, “viver de publi”. O que parecia ser um deslocamento do capital simbólico — da elite para a margem — se revela como a atualização da lógica colonial: a periferia é convocada a se autocolonizar, a performar sua miséria em troca de curtidas. Isso também se reflete no aumento da ansiedade, da depressão e da insatisfação generalizada, num tempo em que a exposição não produz reconhecimento, mas ruído.
A estrutura do Rancho do Carlinhos funde três linguagens hegemônicas no Brasil: a do freak show, a da telenovela e a do reality show. A dramaturgia improvisada, os núcleos familiares fictícios, os embates sentimentais encenados, tudo ecoa uma tradição televisiva que agora se transmuta em performance algorítmica. A diferença é que os protagonistas agora também são os roteiristas, os diretores, os editores e os operadores de câmera. Uma espécie de “autofagia midiática”, em que o sujeito se consome para ser consumido.
Esse ambiente cria a ilusão de autonomia criativa e de autogestão. Mas trata-se, como já apontou Byung-Chul Han, de um novo regime de exploração em que o sujeito é, ao mesmo tempo, patrão e escravo de si mesmo. O narcisismo algorítmico é um cárcere dourado.
Nesse cenário, o trabalho de Vik Muniz com retratos de estrelas de Hollywood feitos com diamantes — obra de 2004 intitulada Pictures of Diamonds — propõe uma ambivalência crítica. Há uma ironia evidente: a representação do efêmero com um material quase eterno. Mas também há nostalgia da idade de ouro da fama produzida pelos meios de massa. Ao contrário de Andy Warhol, que em sua fase pop transformava ícones hollywoodianos em produtos de consumo (diluindo a aura, como previu Benjamin), Muniz parece reabilitar essa aura, ainda que com a ironia de quem sabe a quem pertencem os diamantes utilizados. Sua obra tensiona a relação entre celebridade, valor e matéria, numa era em que a fama se dissolve em micropartículas de atenção digital.
Hoje, enquanto multidões se exaurem para produzir conteúdo nas redes, sonhando com a visibilidade de um influenciador bem-sucedido, os verdadeiros imperadores do mundo — as big techs, os fundos de investimento, os donos das plataformas — operam desde o anonimato. Promovem a ficção da fama democrática enquanto bloqueiam qualquer real redistribuição da riqueza, da dignidade ou da palavra. Impedem o aprofundamento da democracia, não por censura explícita, mas por distração generalizada.
Este é o verdadeiro império do grotesco: um regime onde a exceção se apresenta como regra, onde a miséria é vendida como carisma e onde a exposição é confundida com emancipação. Uma nova forma de espetáculo, onde o horror é editado com filtros, legendas engraçadas e música de fundo. E a plateia aplaude — entre um like e outro.
Jean Wyllys é jornalista, escritor e artista visual. Mestre em Letras é Linguística e doutorando em Ciência Política, é autor de Tempo bom, tempo ruim (2015), O que será (2019) e O que não se pode dizer (2022).