James Harren estabeleceu-se como desenhista de quadrinhos, trabalhando em basicamente todas as grandes editoras americanas ao longo dos anos, provavelmente esperando chegar um ponto em sua carreira em que ele teria coragem de sair de sua zona de conforto e partir para também escrever as histórias. Esse momento chegou em 2021, quando ele, debaixo do cada vez mais importante selo Skybound, da Image Comics, conseguiu não só publicar a primeira edição de Ultramega, criação própria que ele roteirizou e encarregou-se da arte, como fez algo raro, especialmente para autores de primeira viagem, que é libertar-se dos grilhões das 20 e poucas páginas por número, lançando logo mais de 60 delas no primeiro (e nenhum outro com menos de 50) com direito a encadernação com lombada quadrada e um preço de capa substancialmente mais algo do que o normal por conta do tamanho avantajado de seu trabalho. Faz absoluto sentido para uma obra sobre super-heróis gigantes lutando contra kaijus maiores ainda, mas o risco da empreitada era evidente.
Mas Harren, com o trabalho de cores de Dave Stewart e de letreiramento de Rus Wooton, além da editoria de Sean Mackiewicz que foi ainda capaz de colocar toda a máquina de marketing da editora na divulgação da obra, perseverou e encontrou seu público, com uma minissérie – na verdade, pelo número total de páginas está mais para maxissérie – que foi perigosamente dividida em dois momentos bem espaçados temporalmente, um primeiro arco com quatro edições entre março e junho de 2021 e um segundo (e, em tese, final) com cinco edições que começou apenas em setembro de 2024 e, em razão de sucessivos atrasos, só acabou em junho de 2025. Quem acompanhou mensalmente deve ter sofrido, pelo que fico feliz não só por Harren ter chegado ao fim pretendido, como por eu só ter começado a ler quando o final já estava próximo.
Em resumo, como o título e a imagem de destaque não me deixam mentir, Ultramega é uma deliciosa homenagem do autor às séries de televisão japonesas conhecidas como tokusatsu, com uma pegada cartunesca de violência explícita exagerada e de horror corporal desavergonhado, além de diversas referências aos mais variados materiais audiovisuais variados que provavelmente fizeram parte de sua formação como criador, seja RoboCop, Evil Dead e O Enigma do Outro Mundo no lado ocidental do mundo, seja mangás e animes no lado oriental. O que ele faz é usar a franquia Ultraman como inspiração base e, em seguida, chutar o proverbial pau da barraca em termos de mitologia ambiciosa, escala gigantesca e toneladas e mais toneladas cúbicas de sangue e vísceras que marcam já o a primeira edição da saga com um inspiradíssimo momento em que o sangue de determinado personagem gigante, que acabou de ser decapitado, escorre de seu pescoço e inunda a cidade inteira, matando milhares de pessoas por afogamento, servindo inclusive de ponto de virada na narrativa, levando a história a um pulo temporal que muda o status quo do que ele apresentara nas páginas anteriores.
Sabem aquelas incongruências clássicas entre as várias séries de diferentes super-heróis japoneses? Harren tenta reproduzi-las aqui, criando uma narrativa que não tenta manter uma lógica interna afiada e à prova de balas e que partem do conceito de que uma praga cósmica transforma humanos em kaijus, com os Ultramegas sendo a única defesa do planeta contra essas ameaças. O que o autor faz é justamente brincar com a incongruência por vezes enlouquecedora das séries japonesas (quem não já tentou, em em vão, estabelecer conexão entre as várias versões de, por exemplo, Kamen Riders existentes?), com a introdução de personagens atrás de personagens e reviravoltas atrás de reviravoltas que parecem seguir apenas uma ordem, que é a vontade de Harren de fazer desse seu universo sua caixinha de areia que lhe permite criar o que quiser, quando quiser, como quiser. E, com isso, eu não quero de forma alguma dizer que a narrativa não faz sentido, mas sim, apenas, que os alicerces do que ele constrói são flexíveis, moldando-se em grande parte com facilidade ao “momento” da ação, sem muita preocupação com detalhes. Por outro lado, também não quero dizer que tudo funciona perfeitamente à contento mesmo dentro dessa flexibilidade narrativa, pois, por vezes, Harren exagera nessas liberalidades, especialmente quando, já em momento adiantado de sua história, introduz conceitos que, muito sinceramente, sequer haviam sido mencionados mesmo que de relance antes, como é o universo de bolso para aonde o protagonista vai treinar suas habilidades de Ultramega em determinado ponto.
Talvez injustamente, mas não tanto assim, pois creio que a ideia foi essa mesmo, eu poderia dizer que o roteiro de Ultramega não é muito mais do que uma desculpa para James Harren fazer de sua obra uma vitrine para sua arte que, aqui, não sofre quaisquer limitações no quanto ela pode ser insana, revoltante, nojenta e, sob todos os aspectos, absurdamente escalafobética. Se ele é muito eficiente em trabalhar a escala gigantesca dos personagens, algo raríssimo de se ver por aí, ele é muito melhor quando solta completamente as rédeas para materializar as ideias mais absurdas que por diversas vezes me fizeram indagar que cogumelos ele coloca no chá… E, nessa vitrine de mais de 400 páginas, Harren oferece belíssimos splashes de gloriosas destruições titânicas, assim como momentos que orgulhariam o grande David Cronenberg no aspecto do body horror, sempre expandindo constantemente a mitologia de seus personagens – diria até que ele vai além do que deveria, mas tudo bem… – e desenvolvendo-os daquela maneira completamente doida que é toda sua proposta. Essa é um daquelas minisséries em que explorar a arte é tão ou mais importante do que efetivamente ler a história, pelo que é importante para o aproveitamento total que o leitor ou leia com calma ou leia pelo menos duas vezes, retornando para absorver os detalhes do que Harren faz.
Ultramega é um poema de devoção aos tokustatus e kaijus da tradição televisiva japonesa por James Harren e uma incrivelmente divertida leitura para qualquer um que aprecie o gênero ou as boas e velhas liberdade e ousadia criativas, algo que, nos quadrinhos mainstream (falo da DC e da Marvel, claro) dos EUA, está em falta. Ainda bem que existem editoras como a Image Comics que constantemente abrem espaço para propostas que saem do comum e que podem até mesmo parecer comercialmente fadadas ao fracasso. O sucesso dessa maxissérie é a prova de que, sem riscos, não há petiscos. Com a saga encerrada depois de mais de quatro anos, já fico curioso para saber o que será que James Harren está preparando agora.
Ultramega (EUA, 2021/25)
Contendo: Ultramega #1 a 9
Roteiro: James Harren
Arte: James Harren
Cores: Dave Stewart
Letras: Rus Wooton
Editoria: Sean Mackiewicz
Editora: Skybound (Image Comics)
Datas originais de publicação: 17 de março, 21 de abril, 19 de maio e 16 de junho de 2021 (vol. 1) – 18 de setembro, 16 de outubro e 27 de novembro de 2024; 05 de março e 25 de junho de 2025 (vol. 2)
Editora no Brasil: Devir (anunciado)
Páginas: 446