“Ser criança é bom demais, despreocupar com tudo o que se faz… Dar um pulo, um grito, uma risada… Levar a vida bem vivida e bem-amada (…)”. Essa primeira parte da música Ser Criança do cantor brasileiro Rubinho do Vale representa a essência e os direitos que qualquer pessoa não adulta precisa e, claro, deseja ter na vida. No entanto, para os órfãos a situação é ainda mais preocupante, pois, sem um lar, sem uma família, a esperança de ter uma vida feliz vai sendo reduzida a cada dia que passa em virtude do medo de ficar sozinho(a) no mundo. E é nesse contexto duro que se passa a história de Anne with an E, produção original do canal canadense CBC – em parceria com a Netflix -, protagonizada por uma garotinha ruiva e inteligente, chamada Anne, a qual é interpretada de forma exemplar pela atriz Amybeth McNulty. A trama das três temporadas do seriado é baseada no livro Anne of Green Gables (1908), da escritora canadense Lucy Maud Montgomery. Inclusive, a escritora criou uma coleção de livros que acompanhou a trajetória da heroína-protagonista, desde a infância até a fase adulta, em um total de 13 volumes a partir do primeiro mencionado.
Logo no primeiro episódio, somos apresentados ao universo da mocinha de 13 anos de idade: órfã desde muito pequena, Anne foi “adotada” por diversas famílias. No entanto, como forma de “agradecimento”, juntamente à necessidade de aceitação no ambiente familiar, ela precisava trabalhar. Nesse sentido, acabamos conhecendo os traumas da menina, na bela direção de Niki Caro – responsável pelo live-action de Mulan (2020) – com cenas fortes de desamparo infantil. Em meio a isso, ela acaba sendo adotada por engano pelos irmãos Cuthberts: Marilla (Geraldine James) e Matthew (R.H. Thomson). Eles estavam na expectativa de receberem um menino para ajudar nas tarefas diárias da fazenda Green Gables e, a partir da chegada de Anne, a decepção foi um grande sentimento exalado principalmente por Marilla. Contudo, com a convivência diária com a pré-adolescente, ela acaba se afeiçoando e se acostumando com o jeitinho atrapalhado e meigo da garota.
A série é muito delicada, otimista e envolvente para com a protagonista, pois, apesar de Anne ter que lidar com a dúvida e, claro, com a rejeição, qualquer telespectador tem empatia e torce para que a garotinha com sardas seja de fato feliz. Além disso, o roteiro acerta em não mostrá-la como perfeita, e sim como uma pessoa em construção, isto é, repleta de defeitos e um tanto irritante em vários momentos no cotidiano rural. Ela vai para a escola e enfrenta, por exemplo, dilemas comuns da juventude, como a busca pela própria identidade em uma verdadeira aventura. Aqui, podemos perceber o lado mais puro e doce da mocinha, a qual imagina em sua mente mundos de fantasia para escapar da tristeza em demasia que carrega em seu coração sofrido por ser desamparada. Para isso, então, ela imagina histórias de mulheres fortes, que passam por adversidades e se tornam verdadeiras heroínas: é a forma como ela consegue se proteger de todo o desprezo durante anos.
Ademais, Marilla é uma personagem que tem um desenvolvimento interessante ao longo dos 07 episódios que compõem a primeira temporada de Anne with an E. No início, ela se mostra como uma mulher dura, rígida, que não tem tempo para as fantasias mirabolantes da pequena protagonista. Todavia, essa visão é desconstruída a partir do amor criado pela Anne por meio da convivência diária. Destaque para o momento em que ela resolve frequentar um grupo de leitura com outras mulheres, as quais discutem temas pertinentes, como o início do feminismo. Isso seria algo impensável na realidade em que se passa a série, porém, com a chegada da perspicaz da jovem, Marilla tem a oportunidade de questionar aquilo que ela não concorda, desejando, até mesmo, ser ouvida, e não silenciada pela sociedade.
Em contrapartida, a figura paterna de Anne é apresentada de uma forma mais calma: o bondoso e crível Matthew. O maior dilema do personagem é enfrentar as dificuldades impostas pela velhice, porque, sendo agora um homem idoso, o trabalho braçal tornou-se um empecilho para ajudar a própria família. Dessa forma, quando não cumpre mais com o papel de provedor do lar, ele se sente um peso para as duas, transmitindo uma mensagem sobre a importância da família para qualquer ser humano, principalmente nas limitações impostas na velhice. Este é o grande mérito da série: através de bons diálogos, ela consegue transmitir temas pertinentes com um tom de leveza. Isso é conquistado, obviamente, após Anne cativar a todos ao seu redor ao perceberem que ela é de fato uma pessoa especial. Consequentemente, ela acaba fazendo amizades, como a de Diana Barry (Dalila Bela), que acaba entendendo que existem outras possibilidades na vida além de buscar o casamento e ter filhos, sendo uma reflexão sobre a questão do gênero e do papel da mulher, gerando um conflito com os seus pais extremamente tradicionalistas.
Por se tratar de uma adaptação, o seriado possui diferenças comparáveis ao contexto da obra-base, a exemplo do personagem Cole Mackenzie (Cory Gruter-Andrew), um dos amigos de Anne. Ele não existe no livro, tendo sido, dessa maneira, criado de forma inédita para a história televisiva ao abordar a questão da homossexualidade. Aliás, outra personagem que também não existe nos escritos originais de Lucy Maud Montgomery é a tia Josephine Barry (Deborah Grover), uma mulher lésbica, que ajuda Cole sobre a questão da sexualidade. Somado a isso, a tia-avó de Anne representa a importância da convivência com a diversidade, por intermédio do respeito, sendo um acerto da produção. Por mais que a temática tenha sido abordada de forma sutil, o assunto é mostrado de forma delicada em uma bela relação de amizade criada entre Josephine e Anne apesar da grande diferença de idade entre as duas personagens.
Outra característica de agraciar os olhos dos telespectadores é a deslumbrante e belíssima fotografia. Com paletas de cores suaves e quentes, Anne with an E cria uma atmosfera nostálgica e reconfortante, transportando quem assiste para uma natureza bucólica da fictícia cidade de Avonlea, região repleta de campos e de natureza, onde está localizada a fazenda da família. Nas cenas, tem a vastidão dos campos e o isolamento da casa de Anne, aspectos que reforçam a sensação de grandes deslocamentos em meio às andanças dos personagens. Somado a isso, há uma iluminação natural com tons pastéis, os quais contribuem para um tom poético para a trama, enfatizando, assim, a inocência da protagonista e a dureza do mundo ao redor dela. Não podemos nos esquecer ainda da encantadora abertura, muito bem produzida – composta pela música Ahead by a Century, da banda de rock canadense The Tragically Hip -, mostrando animais, árvores, flores, folhas e frases… É como se estivéssemos entrando na mente criativa, na imaginação de Anne. Uma curiosidade: em tradução livre para o português, a canção significa “Um Século à Frente”, ou seja, representa exatamente o comportamento de Anne, uma garota literalmente à frente de seu tempo, não se importando com as regras obrigatórias do final do século XIX, por exemplo.
Portanto, nota-se que Anne with an E é uma grande alegoria sobre a infância, a qual não precisa ser perfeita, e sim ser vivida de forma plena, conforme afirma a música de Rubinho do Vale que iniciou esta minha Crítica. Há momentos de ensinamento sobre moral, coragem, lealdade e otimismo, em uma espécie de fábula, tendo a qualidade da exemplar showrunner canadense Moira Walley-Beckett, produtora e roteirista da famosa série Breaking Bad. Além de esbarrar em temas que ainda são contemporâneos, como o bullying, nos diálogos há reflexões sobre o preconceito, o abandono, a exclusão social, o trabalho infantil e, principalmente, a autoestima, visto que Anne, ao não aceitar as suas características físicas, sentia-se uma garota feia pelo julgamento de adultos e de outras crianças. A jornada da garota é um retrato sensível da construção da identidade e da luta por voz e vez das mulheres, em uma sociedade que insistia em impor padrões machistas. O seriado é, desse modo, uma grande poesia audiovisual.
Anne with an E – 1ª Temporada (Canadá, 2017)
Criação: Moira Walley-Beckett
Direção: Amanda Tapping, David Evans, Paul Fox, Helen Shaver, Niki Caro, Patricia Rozema, Sandra Goldbacher
Roteiro: Moira Walley-Beckett, Lucy Maud Montgomery
Elenco: Amybeth McNulty, Dalila Bela, Geraldine James, Lucas Jade Zumann, R.H. Thomson, Cory Gruter-Andrew, Andrea Arruti, Aymeric Jett Montaz, Christian Martyn, Helen Johns, Ryan Kiera Armstrong, Ella Jonas Farlinger, Kyla Matthews, Deborah Grover, Michelle Giroux, Daniel Kash, Michael Crawford, Jacob Ursomarzo, Jonathan Holmes, Rob Ramsay, Brenda Bazinet, Stephen Jackson, Corrine Koslo, Lia Pappas-Kemps
Duração: 07 episódios de duração média de 40 minutos, exceto o piloto.