Crédito, Getty Images
- Author, Leandro Prazeres
- Role, Da BBC News Brasil em Brasília
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Em seu país natal, Maurício foi condenado a 14 anos de prisão pelo estupro de sua filha, em 2013. À época, ela era uma criança. Seu nome real foi omitido aqui para evitar a identificação de uma vítima de crime sexual conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ele negou o crime e, antes de cumprir sua pena, deixou o Brasil em direção ao Reino Unido. Em 2023, foi preso pelas autoridades britânicas e aguardou, por um ano, o processo de extradição.
Após a rejeição do pedido, Maurício foi posto em liberdade. Ele vive até hoje no Reino Unido, embora seu nome ainda esteja na lista de difusão vermelha da Interpol, um banco de dados de procurados pela Justiça de 196 países.
Mas, se para ele e sua defesa o sentimento era de alívio, em uma sala do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em Brasília, foi o oposto. A decisão da Justiça britânica pôs fim a uma busca que durou quase dez anos e envolveu diferentes níveis da burocracia brasileira.
Quem não acompanhava o caso de perto se perguntou: por que a Justiça britânica preferiu manter em seu território um homem condenado por um crime tão cruel?
A resposta é uma velha conhecida das autoridades brasileiras.
Sua defesa alegou que o sistema carcerário brasileiro, conhecido nacional e internacionalmente por superlotação, condições degradantes e massacres, não teria condições mínimas exigidas pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, da qual o Reino Unido é signatário.
Um levantamento do MJSP a pedido da BBC News Brasil aponta que o Reino Unido já negou quatro pedidos de extradição feitos pelas autoridades brasileiras sob essa mesma alegação desde 2017.
Em outros 13 casos, o Judiciário brasileiro desistiu do pedido de extradição. Em alguns deles, a desistência foi uma estratégia para evitar que se consolidasse no Judiciário britânico a ideia de que todo pedido de extradição brasileiro deve ser negado por conta das condições dos presídios no país.
Apesar de o número parecer pequeno, autoridades brasileiras ouvidas pela BBC News Brasil dizem que a postura britânica é significativa, porque contrasta com a de outras nações europeias que atendem os pedidos de extradição do Brasil apesar de também serem signatários da mesma convenção de direitos humanos.
Elas também dizem temer que a recusa do Reino Unido incentive criminosos brasileiros a buscarem refúgio no país europeu.
“Isso causa um prejuízo para o Brasil porque temos uma pessoa condenada que permanece impune”, diz Rodrigo Sagastume, diretor do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) do MJSP.
“Mas é, também, um prejuízo para o Reino Unido, porque envia a sinalização de que pode ser um lugar seguro para qualquer foragido internacional.”
A BBC News Brasil enviou questionamentos ao Home Office(o ministério do Interior britânico), órgão do governo responsável por assuntos como combate ao crime e imigração, mas não obteve respostas.
Crime sem castigo
Os autos do caso de Maurício, aos quais a BBC News Brasil teve acesso, ilustram a situação de outros brasileiros que escaparam da Justiça brasileira buscando refúgio no Reino Unido.
Segundo a denúncia feita pelo Ministério Público, os abusos cometidos por ele contra sua filha aconteceram após sua separação da mãe da criança. Entre as práticas elencadas pelos promotores estavam beijos na boca da menina e a prática de sexo oral.
Após familiares denunciarem o caso à polícia, ele foi indiciado, processado e condenado, em 2013, a 14 anos de prisão em regime fechado. Sua defesa tentou anular o julgamento sob o argumento de que o depoimento da menina havia sido tomado na companhia da mãe, com quem Maurício tinha desentendimentos.
A defesa também argumentou que o exame de corpo de delito feito na criança nunca chegou a ser apresentado. Mesmo assim, a Justiça manteve a condenação em segunda instância, em julgamento ocorrido em 2016.
Apesar disso, Maurício não ficou no Brasil para cumprir a pena. Antes disso, deixou o país e foi para o Reino Unido. Por conta disso, seu nome foi incluído na lista da Interpol.
Em 2023, ele foi preso no Reino Unido, e sua detenção informada às autoridades brasileiras. Começou, então, uma batalha jurídica para que fosse extraditado.
Os documentos do seu processo britânico, aos quais a BBC News Brasil também teve acesso, mostram que a defesa alegou diversas vezes que o Brasil não teria condições de abrigá-lo sem desrespeitar a convenção europeia.
Uma das principais exigências era a de que ele deveria ter acesso a uma cela com pelo menos três metros quadrados privativos.
Inicialmente, as autoridades brasileiras indicaram que, caso fosse devolvido ao Brasil, Maurício cumpriria pena em um presídio na cidade onde o crime havia ocorrido.
Depois disso, porém, um juiz brasileiro informou a Justiça britânica que a instalação não estaria mais disponível. Um novo local foi designado, localizado na capital do Estado. Em janeiro de 2024, no entanto, o mesmo juiz informou que a instalação não estava mais disponível e admitiu a precariedade do sistema penitenciário do Brasil.
“O cenário de superlotação da penitenciária brasileira torna muito difícil indicar um ritmo de custódia que esteja de acordo com as condições estabelecidas no artigo 3º da CEDH, apesar do tempo e esforço despendidos por este tribunal ao longo do último ano”, diz um trecho da carta enviada pelo magistrado brasileiro.
Com base nisso, a juíza britânica responsável pelo caso decidiu liberar Maurício.
A BBC News Brasil entrou em contato com a defesa de Maurício no Reino Unido, mas não houve resposta. O brasileiro também não foi encontrado para comentar sobre o caso.
Tiro nas costas e 30 anos impune
Outro caso semelhante foi o do ex-cabo da Polícia Militar de Minas Gerais Vilmair Venâncio Soares. Segundo denúncia feita pelo Ministério Público mineiro, Soares estava de folga quando o dono de um bar em Ipatinga pediu que ele lidasse com um cliente que vinha lhe causando problemas.
Ainda de acordo com a denúncia, Soares e o cliente se desentenderam e trocaram agressões. O militar, então, correu atrás do rapaz e atirou em suas costas, matando-o no local.
Soares ficou preso por cinco meses até ser solto para responder ao processo em liberdade. Em 2002, ele foi condenado a 12 anos de prisão em regime fechado. A condenação transitou em julgado em junho daquele ano.
Apesar disso, a Justiça brasileira não conseguiu prendê-lo novamente.
As autoridades brasileiras deram início a uma busca internacional por Soares, que foi localizado no Reino Unido em 2022. A pedido da Justiça brasileira, a polícia inglesa o prendeu em julho daquele ano, 20 anos depois de sua condenação.
Tudo parecia caminhar para um processo comum de extradição, mas o desfecho foi diferente do esperado pelos técnicos do MJSP.
O caso se arrastou por mais de dois anos. Ao longo do processo, as autoridades brasileiras indicaram presídios onde ele poderia ficar no Brasil caso fosse extraditado. A defesa, porém, questionou as condições das prisões apresentadas alegando que elas não atenderiam requisitos mínimos de direitos humanos.
Em janeiro de 2024, o governo brasileiro enviou uma carta para a Justiça britânica admitindo que o Estado brasileiro não poderia garantir que Soares teria direito a uma cela com, no mínimo, três metros quadrados privativos. Assim, como no caso de Maurício, Soares foi, então, posto em liberdade.
Sua advogada, Amanda Bostock, disse à reportagem que não poderia falar sobre o caso sem o consentimento de seu cliente e que não tinha condições de obter essa autorização no momento.

Crédito, Pastoral Carcerária
Posição incomum
Para Rodrigo Sagastume, que comanda o departamento do Ministério da Justiça responsável pelo trâmite dos processos de extradição recebidos e feitos pelo Brasil, a rejeição de pedidos pelo Reino Unido com base nas condições dos presídios brasileiros é vista como “incomum”.
A BBC News Brasil identificou outros dois casos de rejeição de extradição com base nas condições dos presídios brasileiros na Itália, mas um deles, envolvendo o ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, foi revertido em 2015.
“É bem incomum termos negativas com base nessa justificativa. Vários países que são signatários desta convenção recebem nossos pedidos de extradição e concedem sem nenhum problema”, diz Sagastume.
“Nunca houve alegações contrárias de Portugal ou França. Tem sido algo muito específico do judiciário britânico.”
Na avaliação de Sagastume, a postura britânica seria resultado de três fatores.
O primeiro seria que os brasileiros detidos no Reino Unido têm boas condições financeiras e foram capazes de contratar advogados hábeis o suficiente para estabelecer uma tese convincente junto ao Judiciário britânico.
O segundo fator seria o fato de a Justiça do Reino Unido ser baseada no chamado Common Law (Direito Comum, em tradução livre do inglês). Esse sistema jurídico se baseia fortemente em precedentes judiciais e menos em códigos ou leis.
Assim, juízes e juízas se sentiriam mais propensos a decidir contra a extradição para o Brasil baseando-se em decisões anteriores em que seus colegas avaliaram negativamente as condições dos presídios brasileiros.
Isso, segundo Sagastume, estaria por trás de algumas das desistências em processos de extradição feitos pelo Brasil junto ao Reino Unido.
“Quando nós vemos um caso no qual o Judiciário britânico dá sinais de que vai decidir negativamente, é melhor desistir ou parar o processo do que ir até o final e ter uma decisão contrária”, explica.
A terceira é explicação, segundo Sagastume, seria o fato de o governo brasileiro ainda não ter adotado uma posição firme em relação ao governo britânico, cobrando reciprocidade na avaliação dos casos de extradição entre os dois países.
“O Brasil ainda não colocou, em termos reais, um questionamento sobre a reciprocidade entre os dois países porque os pedidos de extradição apresentados pelo Reino Unido são processados aqui, analisados e, muitas vezes, concedidos sem qualquer obstáculo”, diz.
Sagastume diz reconhecer que a situação dos presídios no Brasil é ruim, mas segundo ele, não deve ser considerado inteiramente precário.
“Entendo que o sistema penitenciário brasileiro tem graves problemas que precisam ser abordados, e acho que isso é uma tarefa de casa para o Brasil”, diz.
“Mas esse argumento, como se diz, joga o bebê junto com a água do banho e coloca todo o sistema carcerário brasileiro em uma situação de colapso completa, o que também não é a verdade.”
Procurado, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), disse que as decisões do Reino Unido são um reflexo da complexidade do assunto.
O MNPCT é um órgão independente vinculado ao governo federal que é responsável pelo monitoramento das condições de presídios e estabelecimentos de internação em todo o país.
“As rejeições de pedidos de extradição refletem um entrelaçamento complexo entre legislação, direitos humanos e políticas externas. Demonstram, de uma certa forma, o grau de compromisso daquele país de origem da pessoa presa com as obrigações internacionais e seus compromissos internos com a justiça”, diz a nota enviada à BBC News Brasil.
O órgão disse ainda que o sistema penitenciário nacional abriga aproximadamente 800 mil pessoas, mas teria uma capacidade inferior a 400 mil e que as prisões brasileiras têm um antigo histórico de violações de direitos humanos.
“São comuns práticas e rotinas de violência institucional, com espancamentos, uso ilegal e abusivo de armamentos menos letais (como balas de borracha, spray de pimenta e bombas de luz e som), xingamentos, revistas vexatórias com desnudamento, obrigação de se manter por muitas horas em posição de estresse e outras formas tortura”, diz o MNPCT.
Ainda de acordo com o órgão, “o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer para efetivar as diretrizes de direitos humanos em seu sistema prisional, apesar de ter assinado tratados internacionais importantes nessa área”.

Crédito, Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Processos de extradição envolvendo o Brasil vieram à tona nos últimos dias depois que a deputada federal licenciada Carla Zambelli (PL-SP) anunciou que viajaria para a Itália para evitar ser presa e deportada ao Brasil por ter cidadania italiana uma vez que, segundo a parlamentar, a Itália não extraditaria seus cidadãos.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, argumentam que a Itália extradita, sim, pessoas com cidadania italiana, como ocorreu com o ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, condenado no caso do mensalão.
Ela, no entanto, alega inocência e diz ser perseguida política por seus posicionamentos contrários à atuação do Judiciário brasileiro.
No sábado (7/6), o ministro do STF, Alexandre de Moraes, determinou que o governo federal dê início aos trâmites para a extradição da parlamentar. Não há informações, no entanto, sobre se sua defesa alegará as condições dos presídios brasileiros para justificar sua permanência no país europeu.
O caso Pizzolatto, no entanto, ilustra, segundo especialistas brasileiros, que a Itália pode extraditar cidadãos do país, inclusive nos casos em que a defesa tenta usar como argumento as condições dos presídios brasileiros.
No episódio do ex-diretor, sua defesa chegou a obter uma decisão negando a extradição ao argumentar que os presídios brasileiros não teriam condições de abrigá-lo sem violações aos direitos humanos.
A equipe de procuradores da República que cuidava do caso na época, no entanto, apresentou uma relação com dois presídios, um no Distrito Federal e outro em Santa Catarina, onde ele poderia cumprir sua pena dentro dos requerimentos da justiça italiana.
Em 2015, o Judiciário do país acatou o pedido das autoridades brasileiras e extraditou Pizzolato. Ele cumpriu sua pena em uma penitenciária em Brasília.
Em 2017, o STF concedeu liberdade condicional ao ex-diretor do Banco do Brasil, quando ele deixou, então, a prisão. Em 2020, com base em um indulto natalino concedido em 2017 pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), o STF declarou a pena de Pizzolato extinta.