Acessibilidade
O debate fiscal no Brasil sempre foi terreno arenoso, mas vem ganhando, nos últimos meses, camada adicional de complexidade e trazendo ao mercado o que ele mais rejeita: incertezas e mais tributos.
A busca pela responsabilidade nas contas públicas, diante da meta ambiciosa de zerar o déficit primário, tem priorizado quase exclusivamente o aumento da carga tributária, enquanto discussões sobre revisão de gastos, reestruturação do Estado e eficiência do setor público permanecem em segundo plano.
Esse caminho, embora justificado por pressões fiscais reais, exige uma reflexão mais profunda: qual o impacto dessa estratégia sobre o crescimento econômico, a confiança dos agentes e a sustentabilidade da política fiscal? A literatura econômica oferece pistas claras. E a história recente da América Latina, especialmente da Argentina, traz um sinal de alerta que não pode ser ignorado.
O ajuste fiscal brasileiro: receita crescente, despesa constante
Nos últimos anos, o Brasil tem seguido um caminho conhecido e bastante arriscado na condução de seu ajuste fiscal: o foco excessivo na elevação de receitas, por meio de tributos.
Os esforços para elevar a arrecadação incluem a criação de tributos sobre fundos exclusivos e offshores, discussões sobre tributação de dividendos e reorganização do IRPF, avanço da reforma do consumo (IBS/IVA dual), ampliação da base arrecadatória via fiscalização eletrônica, e mais recentemente, elevação de IOF e a intenção de tributar FIIs, Fiagros, LCI, LCA, CRI, CRA e debêntures.
Essas medidas, somadas, reforçam uma estratégia de ajuste centrada no lado da receita, mas por outro lado, o gasto público continua elevado, pressionado por vinculações constitucionais, folha de pagamento, previdência e subsídios.
A pauta da qualidade do gasto, revisão de políticas públicas e reforma administrativa segue travada, criando uma assimetria fiscal perigosa: o contribuinte é chamado a contribuir mais, sem garantia de que o Estado fará sua parte.
Ajustes fiscais de sucesso envolvem gestão de despesas
O trabalho de Alberto Alesina, um dos mais respeitados economistas fiscais do século XXI, traz uma contribuição fundamental para esse debate. Em sua pesquisa Fiscal Adjustments: Lessons from Recent History, escrita com Silvia Ardagna, Alesina analisou dezenas de experiências internacionais de consolidação fiscal, com foco nos efeitos macroeconômicos de diferentes estratégias de ajuste.
A conclusão dos estudos de Alesina é contundente:
“Ajustes focados em cortes de gastos são consistentemente menos recessivos e mais duradouros do que aqueles baseados em aumento de impostos.”
A lógica é que cortes focados especialmente em áreas ineficientes sinalizam responsabilidade fiscal, reduzem prêmios de risco e abrem espaço para a confiança do setor privado. Já o aumento da carga tributária, quando feito sem contrapartida, tende a:
- Elevar o custo de formalização e produção;
- Desestimular investimento privado;
- Aumentar a informalidade;
- Reduzir o potencial de crescimento de longo prazo.
O trabalho de Alberto Alesina trouxe estudos interessantes sobre países como Irlanda (1987-1989), Canadá (1994-1998), Suécia e Finlândia (anos 1990) onde reformas estruturais via redução de gastos públicos, trouxe como efeito direto a redução da dívida/PIB, crescimento econômico e estabilidade.
Argentina: a derrocada pela via da receita
A Argentina, no período de 2002 a 2023 é um exemplo dramático de desequilíbrio crônico causado por excesso de tributos e descontrole de gastos. Nas últimas décadas, a trajetória do país foi marcada por:
- Crescimento da carga tributária com impostos cumulativos e distorções graves (retenções sobre exportações, tributos em cascata e taxas sobre movimentações financeiras etc.);
- Aumento desproporcional do gasto público impulsionado por subsídios, transferências e ineficiências;
As consequências foram devastadoras:
- Estagnação econômica
- Desindustrialização e perda de competitividade;
- Inflação estrutural;
- Fuga de capitais e deterioração cambial;
- Colapso da credibilidade fiscal e institucional
A principal lição argentina é clara: não há aumento de arrecadação que compense a ausência de uma gestão eficiente e responsável do gasto público.
Quando o Estado ignora seus próprios excessos e transfere a conta para a sociedade produtiva, o resultado é um círculo vicioso de empobrecimento e instabilidade.
Quando mais tributo gera menos arrecadação
A discussão sobre carga tributária não pode ignorar a Curva de Laffer, formulada por Arthur Laffer, que sugere a existência de um ponto ótimo de tributação. A partir desse ponto, aumentos adicionais de alíquota passam a reduzir a arrecadação, ao estimular informalidade, sonegação, evasão fiscal ou mesmo desestímulo à atividade econômica.
No caso do Brasil, a carga tributária já supera 33% do PIB, enquanto a informalidade laboral permanece acima de 39%, e a complexidade do sistema gera custos de conformidade altíssimos.
Esses elementos indicam que estamos perigosamente próximos do ponto de inflexão da Curva de Laffer. Em outras palavras: insistir em mais tributo pode matar a galinha dos ovos de ouro.
O Brasil precisa de um ajuste com responsabilidade mútua
O cenário atual brasileiro exige um ajuste fiscal, mas a sua composição é tão importante quanto sua magnitude. Optar por ajustes via aumento de tributos recorrentes sem enfrentar as ineficiências do gasto público, pode nos conduzir a uma trajetória de crescimento medíocre, aumento da informalidade e deterioração da confiança dos investidores.
Se o ajuste vier somente pela via da receita, sem cortes e revisões significativas no gasto, corremos o risco de:
- Sufocar o setor produtivo
- Desestimular o investimento privado
- Agravar a informalidade
- Reduzir a base de arrecadação no médio prazo
- Fragilizar ainda mais a credibilidade fiscal
A verdadeira consolidação fiscal, geradora de crescimento, estabilidade e previsibilidade, não se faz apenas cobrando mais impostos. Ela exige coragem política para enfrentar o debate sobre prioridades de gasto, reforma do Estado e reconfiguração do pacto federativo.
Ajuste fiscal que funciona é aquele que respeita a economia real
A história mostra que o crescimento econômico sustentável é, em si, uma poderosa ferramenta de ajuste fiscal. Quando a economia cresce, a relação dívida/PIB cai naturalmente, sem precisar de tributos mais altos.
Quando o Estado se mostra eficiente e previsível, os investidores respondem com confiança. Quando o gasto é racionalizado, a sociedade colhe benefícios concretos, e não apenas promessas de equilíbrio.
O Brasil, portanto, tem um dilema: enfrentar o debate do ajuste fiscal e implementar mudanças efetivas e comprometidas com o crescimento do país, ou seguir apostando que é possível tributar cada vez mais os contribuintes e o setor produtivo já pressionado, sem atacar raiz do problema: o tamanho, a rigidez e ineficiência do Estado.
Eduardo Mira é investidor profissional, analista CNPI-T (Anbima), mestrando em Economia, com MBAs em Gestão de Investimentos, Análise de Investimentos e Educação Financeira, empresário, sócio do Clube FII e do Grana Capital, escritor e educador financeiro com cursos que já formaram mais de 50 mil alunos. Está nas redes sociais como @professormira