Crédito, Ton Molina/STF
- Author, Marina Rossi e Mariana Schreiber
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo e Brasília
A validade do acordo de colaboração de Mauro Cid, um dos elementos que sustenta a acusação de tentativa de golpe de Estado contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), voltou a ser alvo de questionamentos após a revelação de uma suposta intenção do delator de fugir do país.
Além disso, uma reportagem da revista Veja indicou que Cid teria usado contas de sua mulher no Instagram para conversar sobre sua delação com terceiros, contrariando regras do acordo.
O militar nega ambas as acusações. Sua defesa diz que as contas citadas pela revista não são da esposa de Cid, que as mensagens reveladas seriam falsas e pediu uma investigação.
Em resposta, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou que a Meta (dona do Instagram) informe quem são os donos das contas, que logins a acessaram e todas as mensagens enviadas e recebidas entre maio de 2023, quando o acordo de colaboração foi firmado, e esta sexta-feira (13/6).
Também por decisão de Moraes, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro teve que prestar novo depoimento à Polícia Federal na sexta-feira, para esclarecer se teria tentado obter um passaporte de Portugal — Cid tem cidadania portuguesa.
No mesmo dia, o ex-ministro do Turismo do governo Bolsonaro, Gilson Machado (PL), foi preso, suspeito de ter atuado para tentar a liberação desse passaporte para o militar no consulado de Portugal no Recife. Ambos negam as acusações.
Bolsonaro, Cid e mais seis ex-integrantes do último governo, incluindo três generais do Exército, são réus em um processo no STF, acusados de liberar uma tentativa de ruptura democrática no final de 2022 para evitar a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Cid, porém, concordou em colaborar com as investigações em troca de punições mais brandas, caso seja condenado no processo.
As defesas dos demais réus, no entanto, questionam a credibilidade da delação de Cid, já que ele mudou o teor da sua colaboração ao longo das investigações.
Segundo juristas ouvidos pela BBC News Brasil, ainda não é possível saber se os novos fatos poderão colocar em xeque a delação — em parte ou na totalidade — de Mauro Cid.
E, mesmo que uma eventual anulação do acordo venha a ocorrer, isso não significa que o processo criminal aberto contra Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado seria automaticamente encerrado, notam os especialistas.
Os juristas ouvidos ressaltam que isso dependerá de outras provas produzidas no processo.
Para o advogado criminalista Maurício Dieter, professor da Universidade de São Paulo (USP), a incerteza sobre o que pode ocorrer com o acordo de colaboração de Cid “é mais um exemplo do limbo jurídico da delação premiada”.
Crítico da delação premiada, Dieter avalia que a ausência de uma lei que especifique claramente o funcionamento do acordo de colaboração abre brechas para qualquer desfecho.
“É mesmo um escândalo a falta de previsão legal sobre os motivos e os efeitos da anulação, no todo ou em parte, da delação. E não só em relação ao delator, mas inclusive em relação a terceiros”.
“Isso dá um poder discricionário ao magistrado para decidir sobre os efeitos da anulação, total ou parcial, da delação. Por isso, é urgente que a legislação avance sobre a anulação das delações nas dimensões de sua existência, validade e eficácia.”
Dieter explica que Mauro Cid, na condição de colaborador, não tem o direito ao silêncio. “Ao contrário, o delator tem um dever de lealdade com a acusação, de modo que uma tentativa de fuga, a revelação de que ocultou parte de verdade dos fatos, ou a não entrega de todos os valores ilícitos podem afetar, tanto a existência, quanto a validade ou eficácia da delação.”
Já o pedido de prisão de Mauro Cid apresentado pela PGR seria justificável, na avaliação de Dieter.
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, Moraes teria determinado a prisão e depois revogado a determinação antes de seu cumprimento. As decisões do ministro no caso estão em sigilo e o STF não esclareceu se isso de fato ocorreu.
“Em termos mais gerais — e sempre em abstrato, porque advogado não deve dar opinião sobre caso concreto, conforme Estatuto da OAB—, a descoberta de um plano concreto de fuga de um acusado já seria autorizativa de prisão preventiva, pelo argumento de garantia de aplicação da lei penal”, afirma.
“No caso de um delator, é ainda pior: significa violar os termos de colaboração e seus deveres como auxiliar do Ministério Público. A prisão preventiva seria, portanto, em tese, perfeitamente possível.”

Crédito, Ton Molina/STF
‘O processo não se baseia exclusivamente na delação’
Já para o advogado criminalista Leonardo Yarochewsky, professor e doutor em ciências penais, os novos fatos não devem influenciar no processo como um todo, independentemente do que ocorra com a validação da colaboração de Mauro Cd.
“O processo não se baseia exclusivamente na delação, existem outros elementos probatórios que dão base e sustentam a acusação”, afirma.
“As defesas dos acusados vão fazer o seu papel de tentar desmoralizar a delação, mostrando que ele caiu em contradição, mentiu. Mas caberá aos ministros do Supremo analisar até que ponto houve ou não mentira”, diz.
“Mas isso também não quer dizer que necessariamente será anulado tudo.”
Em sua delação, Cid relatou que Bolsonaro discutiu com integrantes do seu governo a possibilidade de decretar Estado de Sítio ou de Defesa no país, no final de 2022, como forma de se manter no Poder.
Sua versão foi confirmada no depoimento de testemunhas, como o general Freire Gomes, ex-comandante do Exército, e o almirante Carlos de Almeida Baptista Júnior, ex-comandante da Aeronáutica.
Ambos relataram que Bolsonaro lhes apresentou a ideia de uma rutpura democrática e que recusaram a possibilidade.
Em depoimento ao STF na terça-feira (10/6), Bolsonaro admitiu que chegou a discutir “possibilidades” de reverter o resultado eleitoral. Segundo ele, no entanto, as alternativas teriam sido descartadas por não atenderem à Constituição.
Para o criminalista Aury Lopes Júnior, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, o principal impacto de uma eventual anulação do acordo seria sobre o próprio Cid, ao perder os benefícios da delação.
“O processo, hoje, não perde nada ou muito pouco quando ocorre uma rescisão da delação premiada”, disse, em um comentário no seu Instagram.
“As provas obtidas seguem no processo. Os elementos que ele trouxe poderão ser contaminados? Sim, se forem provas ilícitas. Do contrário, simplesmente vai haver a recisão [do acordo] e só quem vai se prejudicar é ele. As pessoas que estão nesse processo vão ser julgadas a partir das provas técnicas produzidas”, reforçou Lopes Júnior.

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O histórico de controvérsias da delação
Em setembro de 2023, Mauro Cid firmou um acordo de delação premiada, em que aceitou revelar supostos detalhes de crimes cometidos por Bolsonaro e outros integrantes do seu governo em troca de punições mais leves para si.
Assim, Mauro Cid se tornou uma peça central no processo por tentativa de golpe de Estado contra Bolsonaro e outros ex-integrantes do seu governo, sendo três generais do Exército — Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional), Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa) e Braga Netto (ex-ministro da Casa Civil).
O próprio Cid é um dos oito réus acusados pela PGR de integrar o “núcleo crucial” que teria liberado a tentativa de ruptura democrática.
O acordo de colaboração veio depois de o militar ser preso em maio de 2023, após uma operação que investigava falsificação de cartões de vacinação de Bolsonaro, parentes e assessores. Quando sua delação foi homologada, ele foi solto.
Cid também é investigado por suposto envolvimento no desvio de joias sauditas que Bolsonaro ganhou quando era presidente.
O ex-presidente e outros réus no processo por tentativa de golpe de Estado negam as acusações e suas defesas questionam a credibilidade da delação de Cid.
Em março de 2024, o acordo esteve prestes a ruir. O militar foi preso novamente, desta vez por obstrução de Justiça e descumprimento de medidas cautelares.
O pano de fundo para essa nova prisão de Cid foi o vazamento de áudios, pela revista Veja, em que ele dizia estar sendo pressionado pela PF para delatar integrantes da trama golpista.
Naquele momento, ele foi interrogado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, mas ganhou o direito de seguir em liberdade, após se retratar.
Em novembro, mais uma vez a colaboração esteve em risco. Isso ocorreu quando Cid foi convocado novamente a depor, depois que a PF entregou seu relatório apontando detalhes relevantes que o militar não havia mencionado durante a sua colaboração.
Em especial, o plano “Punhal Verde e Amarelo”, que visaria matar, no final de 2022, o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), além do ministro Alexandre de Moraes.
Moraes então convocou novamente Mauro Cid a depor, dizendo que aquela era a “última chance” para que ele falasse a verdade e ameaçando prendê-lo novamente, caso ele omitisse os fatos.
Bolsonaro e os demais réus negam a existência do plano para matar Lula, Alckmin e Moraes, e dizem que Cid mentiu para evitar uma nova prisão.
O que dizem Cid e Machado sobre passaporte português
Mauro Cid esteve na sede da PF em Brasília na sexta-feira (13/6) para depor sobre as novas acusações. Ele deixou o local sem falar com a imprensa.
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, Cid negou à PF intenção de fugir do país e explicou a ida de familiares (seus pais, esposa e filha) aos Estados Unidos no final de maio. A viagem foi vista pela PGR como mais um indício de que o delator estaria planejando deixar o país.
O militar afirmou que a viagem já estava programada, com passagem de volta comprada para o dia 20 de junho, segundo sua defesa contou ao jornal.
Antes do depoimento, ao portal UOL, Cid negou que tenha pedido para o ex-ministro de Bolsonaro conseguir um passaporte para ele e que apenas deu entrada em um pedido de cidadania portuguesa em janeiro de 2023.
Já Gilson Machado negou as acusações, ao falar com jornalistas na entrada do Instituto Médico Legal de Recife, onde foi realizar exame de corpo de delito, antes de sua prisão.
“Não matei, não trafiquei droga. Apenas pedi um passaporte para meu pai por telefone aqui no consulado português do Recife, no qual ele foi outro dia. Ele tem 85 anos”, disse a jornalistas.
Machado afirmou ainda que não foi pessoalmente ao consulado, pois foi seu irmão que acompanhou o pai.
“Não estive presente em nenhum consulado, nenhuma embaixada, nem de Portugal e nem qualquer outro lugar, nem no Brasil, nem fora do Brasil”.
“Eu acho que a justiça de Deus, ela tarda, mas não falha”, disse ainda ao ser questionado sobre sua prisão.