Esta é a hora e a vez dos desajeitados, dos bagunceiros, dos que não se encaixam e nunca se encaixaram. Com a licença das princesas e dos dóceis camundongos, é a hora dos estranhos e dos barulhentos. “Stay weird!” — o recado que emergiu da cultura pop a partir dos anos 2010 e que pode ser traduzido como “permaneça esquisito” ou, de maneira mais interpretativa, “seja você mesmo”, agora vem dos cinemas: “Lilo & Stitch”, live-action da animação lançada pela Disney em 2002, é um fenômeno absoluto que vai muito além das bilheterias. Encarna uma bandeira de comportamento.
Nas telonas, estamos diante de um arrasa-quarteirão. Na quinta-feira, “Lilo & Stitch” passou a marca de oito milhões de ingressos vendidos em sua terceira semana de exibição e lidera o ranking de filmes mais vistos no Brasil este ano, com R$ 166,9 milhões arrecadados até então, segundo a Comscore. Também segue liderando a lista nos Estados Unidos em 2025, ultrapassando grandes blockbusters como “Um filme Minecraft” e “Missão impossível — O acerto final”.
Nas prateleiras do varejo, o bichinho também é hit inquestionável. Segundo dados da Disney, há mais de três mil produtos licenciados da franquia. Tem de tudo, de pijamas a materiais escolares, passando, é claro, pelos brinquedos. Em 2024, o desempenho desse filão relacionado ao filme foi um dos destaques do setor, diz Mara Ronchi, diretora de Produtos de Consumo da The Walt Disney Company Brasil.
— Stitch é um fenômeno, que costumo dizer que acontece uma vez a cada década. O amor do público pelo personagem é algo singular — diz a executiva. — No ano passado, os brinquedos do Stitch apresentaram um crescimento de 621,3% em comparação com 2023. Desde seu lançamento, Stitch se tornou um personagem icônico e querido, com forte apelo contínuo ao longo dos anos. Com o novo filme, a visibilidade do personagem teve um grande incremento, já que o live-action conta a história para as novas gerações. Isso reafirma o Stitch como uma presença constante e atemporal.
O brasiliense Leonardo Silva, de 39 anos, pai do pequeno Rafael, de 2, é testemunha disso. Mesmo sem ter visto o filme, bastou Rafinha ver um simples copo com a imagem do personagem que foi um caminho sem volta.
— Um dia a gente estava no mercado e tinha um copo do Stitch. Ele encucou com o copinho, simples. Pegou ele mesmo sendo um menino de menos de 2 anos. Acho que por ser muito diferente, né? Por ser meio fofinho e tal. Hoje ele tem um monte de coisa do Stitch. Lápis, papel pra pintar. E, quando brinca de massinha, faz um troço azul que chama de Stitch, do jeitinho dele.
O sucesso de Stitch nas prateleiras reflete um momento do próprio setor de brinquedos. Segundo levantamento da Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), produtos licenciados representaram 39% dos lançamentos em 2024, contra 32% em 2023. O mercado também se expandiu e movimentou R$ 10,27 bilhões em 2024, um crescimento de 8,5% em relação a 2023.
Para a especialista de consumo Marina Roale, head de pesquisa e sócia da Consumoteca, parte do sucesso de Stitch nas vendas passa por uma entrega de bastão de uma geração para outra. E, claro, pelas características não convencionais do personagem.
— Primeiro a gente tem que ter esse olhar da geração Alfa, que é uma geração muito aberta, que consome essas histórias autênticas. É uma geração menos conectada com os clássicos da Disney. E tem um fator interessante aí, que são os filhos dos millennials, uma geração muito nostálgica, que tem uma relação afetiva com a própria infância muito grande. De repente você vê seu filho revivendo um clássico a que você assistiu, isso cria uma conexão — avalia Marina.
“Lilo & Stitch” conta a história de Lilo, uma menina havaiana órfã e solitária que faz de Stitch, uma criatura alienígena, seu melhor amigo. Stitch é o nome que ela dá para a Experiência 626, criada por um cientista também alienígena. Stitch é indestrutível, altamente inteligente e tem tendência à destruição — leia-se um bagunceiro incorrigível. Sem spoilers, ele vai parar no Havaí, causando uma grande confusão no pequeno núcleo familiar de Lilo.
É quase unânime que Lilo é uma graça, o.k., mas, convenhamos, é Stitch quem rouba mesmo a cena.
— Lilo não pegou — diz Léo Francisco Rolim Costa, colecionador e profissional de comunicação que por quase 20 anos manteve na web o portal Planeta Disney, dedicado aos filmes da empresa. — A gente está numa moda Stitch, que funciona muito bem. A Disney fez toda uma campanha de marketing para o lançamento de “Lilo & Stitch” live-action em cima somente do Stitch. Lilo não aparece nos cartazes, mal aparece nos trailers.
Léo Francisco diz que a animação original “encanta” porque versa sobre família. Mas, em 2002, segundo ele, fez um sucesso aquém do esperado.
— Poderia ter feito mais, mas a gente vivia uma época diferente. No começo dos anos 2000, a Disney era vista como uma coisa de criança. Mesmo assim, concorreu ao Oscar de melhor animação, perdendo para “A viagem de Chihiro” — lembra.
De acordo com o jornal The New York Times, o filme original arrecadou mais de US$ 273 milhões (ou US$ 484 milhões quando ajustado pela inflação) nas bilheterias globais, não conseguindo gerar os números de sucesso de antecessores da Disney como “O Rei Leão” e “A Bela e a Fera”, ou de sucessos bilionários mais recentes como “Frozen” e “Zootopia”. “No entanto, o personagem só cresceu em popularidade”, afirma a publicação, sublinhando que Stitch não tem nacionalidade, gênero, raça ou idade. Chris Sanders, um dos criadores, rabiscou a criatura pela primeira vez na década de 1980, enquanto brincava com a ideia de um livro infantil. “Se um bando de personagens da Disney, como Mickey, Donald e o Pateta fizessem uma festa de Natal, eles não convidariam o Stitch. Mas, se um bando de vilões fizesse uma festa, eles também não o convidariam”, disse Sanders ao NYT. “Quando pensei nisso, percebi que Stitch existe nessa zona entre o bem e o mal. Ele existe na zona em que nós existimos”.
Ainda segundo o jornal americano, os relatórios financeiros anuais da Disney para 2023 e 2024 incluíram “Lilo & Stitch” em uma “pequena lista” com apenas nove exemplos de suas principais propriedades licenciadas, colocando o filme no mesmo nível de importância de clássicos como Ursinho Pooh e Mickey, além de Star Wars e das princesas Disney. A bagunça venceu.
O sucesso de “Lilo & Stitch” acontece igualmente de maneira avassaladora nas redes sociais. São vários os famosos que já promoveram festas para seus filhos inspirados na franquia, a exemplo de Virginia e Viih Tube, além da cantora Ivete Sangalo. No caso de Viih Tube, trata-se de um amor antigo.
— Antes mesmo de ser uma febre do filme agora, já era uma loucura lá em casa — diz Eliezer, o ex-BBB, marido de Viih Tube. — Eu posso dizer que acho que a maior concentração de Stitch que existe no mundo é lá em casa, porque a Viih é alucinada. Tanto que ela tem tatuagem, é o filme da vida dela. A gente tem tudo deles. Pensa num objeto. Com certeza, lá em casa tem. Tem Stitch em todos os cômodos da casa. Sem brincadeira. Temos dois cachorros. Um se chama Lilo e o outro, Stitch.
Mara Ronchi, diretora de Produtos de Consumo da The Walt Disney Company Brasil, destaca números sobre o alienígena nas redes:
— Um dado que nos chamou atenção, por exemplo, é o volume de conteúdo espontâneo nas redes: no TikTok, já são mais de 115 milhões de menções orgânicas envolvendo Lilo & Stitch, entre vídeos, memes e fotos com produtos. Stitch representa uma figura única: um “anti-herói fofo” — imprevisível, divertido e com muito coração. Ele conecta gerações, une nostalgia e novidade, e se mantém como um dos personagens mais queridos e versáteis da Disney.
Ronchi afirma que a Disney esperava esse nível de adesão comercial e afetiva do público ao relançamento da franquia.
—Havia uma expectativa positiva, claro — mas o que mais nos moveu desde 2021 foi perceber, tanto por meio de dados quanto pela escuta ativa do público, uma conexão emocional cada vez mais forte com a franquia. O Stitch é um personagem que toca diferentes gerações com sua irreverência, autenticidade e humor. A resposta afetiva e o interesse crescente vieram de forma muito orgânica, e foi natural apostar em novos formatos e produtos que acompanhassem esse carinho renovado.