No ano passado, as mudanças climáticas atingiram a população de norte a sul do país. Enquanto no Rio Grande do Sul houve as enchentes, a Amazônia viveu uma seca histórica, afetando produções de açaí e castanha e deixando comunidades ribeirinhas isoladas.
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Segundo estudo do Banco Mundial, os extremos climáticos têm causado, no Brasil, perdas anuais estimadas em R$ 13 bilhões, o equivalente a 0,11% do PIB do país no ano passado. O relatório diz ainda que esses eventos podem levar à pobreza extrema até 3 milhões de brasileiros até 2030.
A Defesa Civil do Amazonas afirmou que cerca de 770 mil pessoas do estado foram afetadas pela seca, o que motivou o decreto de situação de emergência em todos os municípios amazonenses. Os prejuízos, públicos e privados, ultrapassaram R$ 620 milhões.
José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), explica que esses eventos têm se tornado mais intensos e frequentes:
—A seca afeta três seguranças principais, a segurança hídrica, como água para consumo humano, a segurança energética, para geração de hidroenergia, e a segurança alimentar, por causa da produção de comida, da agricultura. As áreas que não são afetadas por secas podem ser pelos desastres associados a excesso de água. Ou seja, ninguém escapa. Ou tem muita água ou pouca água.
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Para Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, os países do Sul Global sofrem mais:
— Eles têm mais dificuldade de lidar com os efeitos das crises. E comunidades que estão em áreas de risco nos perímetros urbanos, os mais pobres, bem como as populações tradicionais que têm na interação com a floresta a sua essência, tendem a sofrer mais.
Veja abaixo histórias de pessoas que tiveram a vida impactada por extremos climáticos:
Em Angra, fuga da enchente com a família em um caiaque
Natural de Pernambuco e há 20 anos morador de Angra dos Reis, Cícero Bezerra de Melo já está acostumado com as chuvas. Mas, em 5 de abril do ano passado, ele e milhares de moradores do bairro Parque Mambucaba sofreram com uma tempestade que Bezerra conta nunca ter visto igual.
Sua casa foi uma das invadidas pela água, que alcançou mais de dois metros, provocando queda do muro e perda de quase todos os móveis e eletrodomésticos, incluindo camas, guarda-roupa, máquina de lavar e geladeira.
— Só consegui reaproveitar o botijão de gás, foi uma coisa desesperadora. Até hoje a gente tem trauma. Quando chove, ficamos com medo. Nunca tinha acontecido dessa forma — lamenta Bezerra, que contou com a vaquinha de amigos da pequena marina onde trabalha como marinheiro de rampa para se reerguer.
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— Tinha previsão para chuva naquele dia, e caiu por volta das 20h. Às 4h a água começou a subir aqui em casa. Como nunca tinha acontecido enchente desse nível, eu não estava esperando. Nós nos abrigamos na casa de um amigo, onde há um segundo andar.
Bezerra conseguiu salvar o carro e a moto, que ele retirou cedo da frente de casa por causa da previsão. Ele, seu irmão, sua esposa e filho tiveram que usar um caiaque para saírem de lá à noite e foram acolhidos por amigos.
Um ano depois, a casa, que ainda está sendo recuperada, tem o dobro de moradores. Sua enteada e os três filhos dela se mudaram para lá.
— Na casa dela foi pior ainda, perdeu tudo, e a criança mais nova tinha 7 meses. Estão aqui até arrumar um lugar. A casa tem dois quartos, uma sala, cozinha e banheiro. E estão cabendo os oito por enquanto.
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Bezerra diz que a expansão desordenada do bairro também agrava as enchentes.
— O bairro cresceu, com muitas construções. A água antes tinha para onde escoar, hoje não. O lugar já é baixo, na beira do mar. A tendência agora é piorar. Se o poder público não fizer nada, não fizer dragagem no rio, vai acontecer isso sempre — alerta Bezerra.
Na Amazônia, a estrada de rios secou e isolou comunidades
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Ano passado, diante da seca histórica na Amazônia, o Rio Madeira, um dos mais importantes da Bacia Amazônica, chegou a apenas 25 centímetros na altura de Porto Velho (RO), o recorde da série histórica da medição do Sistema Geológico do Brasil (SGB), que começou em 1967. Esse rio, que nasce na Bolívia, passa por Rondônia e vai até o Amazonas, é um dos mais importantes para transporte de cargas da Região Norte.
O seu nível extremamente baixo, que se refletiu em toda a bacia, atingiu especialmente comunidades remotas da região, que dependem dos rios para escoar produções e trazer alimentos e itens essenciais. Na Terra Indígena (TI) Uru-Eu-Wau-Wau, que fica na Bacia do Madeira, Weliton Cabixi, de 26 anos, conta que foi a pior seca que já viveu.
— Ano passado foi a pior, e vem nos afetando bastante. Como a gente vive em local de acesso somente pela via fluvial, tivemos dificuldade em levar nossa produção para outras cidades e trazer alimentos — lamentou Cabixi.
Um El Niño muito intenso causou aquecimento do Oceano Atlântico Norte, afetando o regime de chuvas da Amazônia. Segundo dados do Cemaden, 70% dos municípios da região (414 de 591) tiveram um ano de seca. Vários rios baixaram aos menores níveis já vistos, como o Xingu e o Iriri.
A seca impactou gravemente a produção de alimentos. Por causa da seca de 2024, a extração de castanhas reduziu mais de 70%. De dezembro a maio, os ouriços de castanha, como são chamados os frutos das castanheiras, caem das árvores e atraem extrativistas que coletam, separam e organizam o que é o segundo produto de extração mais vendido da Amazônia (atrás apenas do açaí).
Mas a estiagem comprometeu a fisiologia das castanheiras e a reprodução das abelhas, que são as responsáveis por polinizar as flores.
A tribo Uru-Eu-Wau-Wau foi um dos locais onde não houve safra de castanha, que é essencial para a alimentação das famílias e geração de renda. Além disso, outras plantações, como laranja, café, mandioca e banana também sofreram impactos.
Corte de margem de lucro para compensar alta de café de 82%
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Daniel Langone é sócio da Presso Cafés e trabalha na área há mais de dez anos. Nesse período, teve de lidar com problemas de custos, inflação e demais intempéries do mundo empresarial, mas nada perto do que acontece agora. Há cerca de um ano, o preço mundial do café disparou.
A seca e a chuva irregular em polos produtores vêm afetando os cultivos, levando a desabastecimento. Nos últimos 12 meses até maio, o café ficou 82,24% mais caro de acordo com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE.
Langone conta que, em janeiro de 2024, comprava uma saca (60 kg) de cafés especiais por R$ 900. Hoje, ele paga R$3 mil. Os cafés que a Presso vende têm pontuação média de 84 pontos, em uma escala de 0 a 100, o que coloca os produtos na categoria de “café especial”. Os grãos são comprados de fazendas das Montanhas Capixabas, no Espírito Santo.
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Após a torra, a Pressa vende para cafeterias, escritórios e hotéis da cidade. Com a alta de custos, o seu grão torrado passou de R$ 60 o quilo para R$98. O que salva o negócio, diz Langone, é que o consumo não caiu. A demanda segue em alta, mas sua margem de lucro ficou menor.
— Estamos sofrendo na pele o impacto dos custos. Essa explosão dos preços está anunciada há muitos anos, por uma vertente climática pesadíssima que causa a falta de café. Não é inflação de demanda, a produtividade é que está muito baixa — explica Langone.
O comerciante conta que o sul de Minas foi a região com mais problemas e que houve até casos de lavouras perdendo cerca de 70% da produção.
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Além de aumentar o preço sem repassar totalmente a alta de custos, Langone tem alugado mais máquinas de café a lojistas, o que demandou mais investimento e financiamento, e teve de diversificar a carteiras de clientes, com entrada de escritórios e faculdades.
— Eu sempre aluguei, mas tivemos que aumentar. O faturamento já é quase 50% pela locação de máquinas. Outra coisa é a empresa deixar de virar loja apenas de café. Hoje vendemos chocolates, capuccinos e cápsulas de café — afirma Langone.
Assentados ficaram encurralados pelo fogo no Pantanal
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Ano passado, mais de 30,8 milhões de hectares foram queimados no Brasil, uma área maior que a Itália, segundo o Monitor do Fogo, do MapBiomas. O número atípico, impulsionado pelo extremo El Niño que levou o país a uma seca histórica, foi 79% maior do que em 2023 e 62% acima da média histórica entre 1985 e 2024.
Segundo dados do Global Forest Watch, da ONG internacional World Resources Institute (WRI), foi a pior temporada brasileira de incêndios florestais das últimas sete décadas.
No Pantanal, a área queimada aumentou 157% na comparação com a média histórica dos últimos 40 anos, de acordo com o MapBiomas. Os efeitos do fogo foram sentidos na pele e no campo pela produtora Camila Ormonde, que cria gado no assentamento de agricultura familiar Laranjeiras, no pantanal do Mato Grosso.
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Metade de sua propriedade, em Cáceres (MT), a nona cidade com mais queimadas no Brasil ano passado, foi tomada pelo fogo. Ela perdeu 12 quilômetros de pastagem, três de cerca.
Incluindo a área de Laranjeiras e do Ypê Roxo, o assentamento vizinho, mais de 200 cabeças de gado morreram com as queimadas. O momento mais tenso, conta Camila, foi entre os dias 8 e 12 de setembro do ano passado, quando duas frentes de fogo “encurralaram” os assentados.
— A gente estava acompanhando o fogo que vinha de um lado, só que a gente não tinha noção que tinha outra frente por trás. E aí começou aquela fumaça prejudicando a respiração de todo mundo, com o olho irritado — conta Camila, lembrando que os bombeiros demoraram três dias para chegar. — Quando chegaram, o que tinha que queimar já tinha queimado.
As nascentes que eram a principal fonte de água para a população secaram. Até hoje precisam de caminhão pipa.
— Foi o pior de todos os tempos, veio consumindo tudo.
Agora, ela cobra auxílio financeiro, renegociação de dívidas e tratamento de água:
— Somos pequenos produtores, de agricultura familiar. As estradas estão péssimas, a gente não consegue nem escoar o pouco que produz.