Crédito, Getty Images
- Author, Rute Pina
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
O Censo de 1872, o primeiro levantamento populacional do país, estimou cerca de 30 mil habitantes na capital paulista. No mesmo ano, a cidade do Rio de Janeiro tinha aproximadamente 270 mil moradores.
A transformação que viria nas décadas seguintes é, nas palavras do jornalista e historiador Rafael Cariello, “o tipo de coisa que acontece pouco na história econômica mundial”.
“São Paulo era uma província que importava pouco e era uma espécie de periferia do Rio”, afirma.
Cinco décadas depois, o Censo de 1920 mostrava uma população 19 vezes maior na capital paulista: cerca de 580 mil habitantes.

Crédito, Arquivo Nacional
Ainda não havia o cálculo do PIB, soma de todos os bens e serviços produzidos, para medir a riqueza no Brasil Imperial. Mas era possível ter uma ideia de quais províncias eram mais ricas.
Um dos indícios era o volume de impostos arrecadados pelo governo central. Outro, o que entrava e saía pelos portos.
“Sabemos que São Paulo era relativamente pobre ou, pelo menos, não tão rica quanto outras províncias pelos impostos arrecadados pelo governo central. E, grosso modo, eram essas as que importavam ou exportavam em maior volume”, explica o pesquisador.
As províncias mais ricas do país se concentravam nas regiões produtoras de commodities como a cana-de-açúcar para exportação, nas Minas Gerais do ouro e na capital do país, o Rio de Janeiro (de 1763 a 1960).
Mesmo com solo fértil e terras propícias para a agricultura, São Paulo tinha produção agrícola menor do que outras regiões do país.
Como, então, uma província periférica e relativamente pobre se transformou no Estado mais rico do Brasil? A BBC News Brasil conversou com especialistas para entender os caminhos que levaram São Paulo concentrar poder econômico no país.
O desafio de transporte

Crédito, Arquivo Nacional
Para produzir e exportar mais, São Paulo tinha que resolver um problema: a Serra do Mar.
A ligação entre o interior e o litoral, por onde escoavam os produtos para exportação, exigia a travessia de uma região montanhosa tão íngreme que recebeu dos colonizadores portugueses o apelido de “a muralha”.
Por séculos, esse percurso foi feito por trilhas, muitas delas foram abertas e usadas por povos indígenas, como o antigo Caminho do Peabiru — uma rota indígena criada antes da colonização, que ligava o oceano Atlântico ao Pacífico.
A primeira estrada pavimentada veio só no fim do século 18. Concluída em 1792, a Calçada no Lorena era estreita e sinuosa: 50 km com 133 curvas do alto da serra até Santos.
“O planalto paulista era um dos terrenos mais férteis e bons para cultivo no Brasil, desde sempre. Mas era muito caro levar qualquer coisa de lá para o litoral ou trazer algo do litoral para o planalto pelo custo de transporte”, diz Cariello.
Na mesma época, o café começava a ganhar espaço na agricultura brasileira. Mas, em São Paulo, só compensava plantar em áreas próximas ao litoral, como o Vale do Paraíba, na divisa com o Rio de Janeiro.
Até então, a produção era escoada em tropas de mulas.
“Quando eram muitos dias, você tinha que alimentar a mula e tinha que dar muito milho para as mulas, e milho era muito caro. Era a gasolina da época”, descreve o pesquisador.
O estudo de Cariello mostra que o avanço do café rumo ao interior paulista se deu, inicialmente, por uma mudança política. Foi a descentralização do poder no Império e a criação de um sistema de pedágios que permitiram investimentos nas estradas e, com isso, baratearam o transporte.
Cariello analisou registros de um antigo posto de fiscalização em Cubatão, próximo a Santos.
“Os tropeiros que desciam a serra com mulas carregadas de café, açúcar e outros produtos tinham que declarar o que traziam e de onde vinham. Esses registros eram anotados, dia a dia, entre 1835 e 1867”, explica.
Ao sistematizar os números, ele identificou a origem das cargas que chegavam ao porto.
“Entre 1835 e 1850, o volume de café exportado do Vale do Paraíba e do interior paulista era equivalente. Mas, a partir de 1850, há um salto vertiginoso na produção do interior, especialmente de Campinas, Limeira, Rio Claro, Piracicaba e Itu.”

Crédito, Fernando Otto/BBC
Como o café chegou a regiões tão distantes se o transporte seguia lento e caro? A resposta, segundo pesquisador, está em uma transformação institucional.
Em 1831, o então imperador Dom Pedro 1º abdica do trono. A partir de 1834, uma reforma constitucional descentralizou parte do poder no Império e permitiu que as províncias criassem suas próprias assembleias legislativas.
São Paulo toma uma decisão que, mais tarde, vai ter grande impacto em seu desenvolvimento econômico. O Estado decide pagar mais impostos para melhorar as estradas e diminuir a duração, e consequentemente o custo, das viagens. E isso é feito através da criação de dezenas de pedágios.
O dinheiro arrecadado então é usado para construir estradas melhores, e é isso que permite que o café comece a ser plantado mais longe do litoral.
Em 1846, foi inaugurada a Estrada da Maioridade, uma via com nove metros de largura, menos curvas e muito mais eficiente que a anterior para vencer a Serra do Mar.
“Esse pedágio passou a representar quase metade da arrecadação da província”, diz o pesquisador.
“Ou seja, mudança política permitiu que a elite paulista resolvesse um problema de coordenação e arrecadação de impostos — um problema que o centro, o Rio de Janeiro, não conseguia resolver. A minha explicação é essa: uma descentralização do poder político permitiu que São Paulo enriquecesse.”
A grande revolução, no entanto, viria duas décadas depois: a chegada da ferrovia no Estado, em 1867. A São Paulo Railway Company ligava a capital paulista a Jundiaí.
Construída com capital inglês, a ferrovia também recebeu investimentos dos produtores de café paulistas porque seria por ela que a produção seria transportada até o Porto de Santos.
Na mesma época, países como os Estados Unidos passavam a consumir grandes volumes de café. Com um mercado externo em expansão e infraestrutura mais eficiente, as plantações do grão se espalharam para outras partes do Estado.
Fim da escravidão e migrações
Em 1850, o Brasil proibiu o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. A decisão foi tomada, em grande parte, por pressão política da Inglaterra, que via no país um potencial mercado consumidor para seus produtos industrializados.
São Paulo passou a incentivar a imigração, principalmente de europeus, para suprir as demandas da produção de café.
“Existe uma razão econômica evidente, mas por trás também havia um projeto racial. Buscava-se o embranquecimento da população brasileira. A preferência por imigrantes europeus estava alinhada às teorias raciais e higienistas da época”, afirma o historiador Pietro Amorim, pesquisador do Museu do Café, em Santos.
Entre meados do século 19 e o final dos anos 1970, a antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás, na capital paulista, recebeu cerca de 3 milhões de pessoas. Em 1891, o edifício abrigou aproximadamente 90 mil imigrantes — o triplo da população que São Paulo tinha apenas duas décadas antes, em 1872.

Crédito, Fernando Otto/BBC
Esses imigrantes não apenas trabalharam nas lavouras de café, mas também ajudaram a tornar mais dinâmica a economia local, criando um mercado consumidor e empreendendo em pequenos negócios.
A demanda por roupas, sapatos, chapéus e outros bens impulsionou o surgimento das primeiras indústrias no Estado.
“A transformação que São Paulo vivencia entre 1872 e a década de 1950, quando se torna a maior cidade do Brasil, é resultado direto desse fluxo migratório”, explica o historiador Henrique Trindade, coordenador do setor Educativo e de Formação do Museu da Imigração.
“Essa mudança começa demograficamente, mas logo se expande para o campo econômico, social e cultural.”
A migração, no entanto, não se restringiu a imigrantes estrangeiros. A partir do século 20, São Paulo passou a receber também fluxos de migrantes vindos de outras regiões do país, especialmente do Nordeste. Em 1929, pela primeira vez, o número de brasileiros que chegavam ao Estado superou o de estrangeiros.
Industrialização
Embora esse primeiro impulsionamento da indústria, o Estado ainda dependia muito do café. A virada mais forte para a indústria veio a partir da crise de 1929.
O mundo entrou em colapso econômico, e o Brasil teve dificuldade de importar produtos, principalmente os industrializados.
São Paulo já tinha aqui uma base industrial que podia responder a essa impossibilidade de que o país tinha de importar produtos, explica Elizabeth Balbachevsky, professora associada ao departamento de Ciência Política da USP.
“Essa herança que São Paulo traz para o século 20 acaba dando para São Paulo uma dianteira que se preserva até hoje”, diz.
Com Getúlio Vargas, o Brasil passa a adotar, a partir de 1930, uma política de proteção à indústria nacional. “A indústria paulista se beneficia mais uma vez dessa dinâmica”, afirma a professora.
Nas décadas seguintes, o café começa a perder espaço como motor da economia paulista, enquanto o Estado incentiva outras atividades econômicas.
“A partir dos anos 1970, há um movimento de diversificação maior na economia e na própria agricultura. Começa um plano de erradicação dos cafezais e o incentivo a outros produtos e outras atividades, como a industrialização, o petróleo. E o café vai declinando na sua posição de motriz da economia paulista”, afirma Amorim, do Museu do Café.
A construção da ‘superioridade paulista’

Crédito, Getty Images
Elizabeth Balbachevsky argumenta que parte do sucesso econômico de São Paulo se deve ao fato de a província não ter sido importante no projeto colonial português. Para ela, isso teria protegido a formação institucional do Estado de uma caraterística fundamental de outras regiões, o patrimonialismo.
“Não é porque São Paulo era mais rico, maior, ou tinha terras melhores. Isso você encontra no Brasil todo”, afirma.
“Mas, de alguma forma, a colonização paulista se preservou de uma característica marcante do projeto ibérico nas Américas, essa mescla entre Estado e interesses privados.”
Segundo ela, essa relativa ausência de uma lógica patrimonialista teria aberto espaço para uma iniciativa capitalista mais autônoma e menos dependente.
“Criou-se uma institucionalidade menos parasitária da atividade econômica”, defende.
Mas essa explicação é contestada pelo sociólogo e pesquisador Jessé Souza, autor de mais de 20 livros, entre eles A Elite do Atraso (Editora Leya) e Classe Média no Espelho (Sextante).
Para ele, o diferencial paulista não foi institucional, mas simbólico. Após a derrota de São Paulo no levante de 9 de julho de 1932 (revolta contra o governo de Getúlio Vargas), a elite local percebeu que precisava estabelecer domínio para consolidar poder político, econômico e racial.
“O que São Paulo fez foi usar o poder simbólico para se legitimar como se fosse uma espécie de Estados Unidos no Brasil, com resgate dos Bandeirantes como desbravadores, seguindo uma lógica protestante”, afirma.
“A elite paulista entendeu que não bastava ter as fazendas de café ou as indústrias. Era preciso bombardear a população com uma mentira que fizesse com que o restante do país, especialmente quem não é branco, se sentisse inferior.”

Crédito, Getty Images
Para Souza, esse processo começa com a criação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 1894, mas se consolida com a fundação da USP, nas décadas seguintes.
“Não estou dizendo que a USP é ruim. É a melhor universidade do país. Mas ela também foi uma usina ideológica a serviço desse projeto de poder.”
Para ele, a elite paulista foi capaz de repaginar o escravismo sob a linguagem da moralidade, da modernidade e da meritocracia.
“Enquanto o Nordeste teve quase 400 anos de escravidão, São Paulo teve quase 100, mas assumiu o comando ideológico do país com um pensamento profundamente racista. A elite trouxe imigrantes brancos para cá e criou a ideia de que São Paulo era uma Europa no meio da África.”
Esse imaginário, diz Souza, foi fundamental para a exclusão política e econômica da maior parte da população brasileira.
“São Paulo conseguiu usar o racismo para impedir o acesso popular ao Estado. Porque a elite precisa do Estado para se apropriar de recursos públicos. E fez isso dizendo que o nordestino era preguiçoso, que os pobres não sabiam votar, que só ela tinha competência para liderar o país.”
Segundo ele, o investimento nessa narrativa, por meio de institutos, universidades, jornais, rádios e televisões, foi central para manter São Paulo no centro do poder.
“Se você escuta a mesma ideia por 100 anos, acaba acreditando”, afirma. “E a ideia é essa: São Paulo é mais virtuoso, trabalhador e moderno. Quando, na verdade, foi só mais eficiente em naturalizar um projeto de dominação.”