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- Author, Thomas Pappon
- Role, BBC News Brasil
Há 30 anos, a Europa foi palco de um genocídio que chocou o mundo: a execução sumária, por cerca de uma semana começando em 11 de julho de 1995, de cerca de 8 mil homens e meninos bósnios muçulmanos por forças de bósnios de etnia sérvia.
“Numa floresta encontrei uma pilha de roupas. Havia três bengalas naquela pilha, confirmando relatos de que homens mais velhos também tinham sido mortos”, contou à BBC o jornalista americano David Rohde, um dos primeiros a descobrir evidências do massacre.
Ele visitou, sozinho, pouco após a tomada da cidade de Srebrenica pelas forças sérvias, locais como campos de futebol, florestas e campos que tinham sido apontados como palcos de execuções por testemunhas sobreviventes.
Esse episódio conta como foi o Massacre de Srebrenica, um ápice trágico da Guerra da Bósnia, que entre 1992 e 1995 mergulhou a antiga república iugoslava de Bósnia e Herzegovina em uma guerra sangrenta que deixou cerca de 100 mil mortos.

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No final de 1989, o Leste da Europa estava em polvorosa. O colapso da União Soviética e de seu regime comunista deu à luz vários países independentes no continente, despertando, em uma região em particular, um fantasma que estava adormecido desde a Segunda Guerra: o nacionalismo.
Essa região é antiga Iugoslávia, que durante décadas, sob o comando de Josip Tito, foi o mais autônomo e um dos mais prósperos países do chamado bloco comunista. Era formada por seis repúblicas: Croácia, Bósnia e Herzegovina, Eslovênia, Sérvia, Macedônia e Montenegro.
No início dos anos 1990, pouco após da queda do muro de Berlim e a realização de plebiscitos, a Eslovênia, a Croácia e a Macedônia declararam sua independência, contra a vontade do poder central em Belgrado, antiga capital da Iugoslávia e agora, capital de Sérvia e Montenegro.
A situação era particularmente tensa na Bósnia e Herzegovina, onde a população era formada, em sua maioria, por 44% de bósnios muçulmanos, 32% de bósnios sérvios ortodoxos e 17% de bósnios croatas católicos. Em 1992, pouco após um plebiscito — boicotado por grande parte da população sérvia — ter aprovado a independência, a república mergulhou na guerra e no caos, no mais sangrento e mortífero conflito na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
Durante três anos, o mundo acompanhou horrorizado o cerco, bombardeios e destruição de várias cidades e vilarejos, as mortes de civis e o rastro de sangue e estupros deixados pelas forças das três etnias, mas principalmente pelas forças sérvias, armadas e apoiadas por Belgrado.
Em 1995, a principal força agressora no conflito era a dos bósnios sérvios, que após várias denúncias de abusos e violações passaram e ser bombardeadas por aviões da Otan, a aliança militar de Estados Unidos e Canadá com vários países europeus.
Para tentar conter a violência, as Nações Unidas criaram portos seguros, áreas protegidas por soldados da ONU para abrigar refugiados muçulmanos bósnios — e protegê-los de ataques dos bósnios sérvios.
Um dessas portos seguros era a cidade Srebrenica, no leste da Bósnia, um enclave muçulmano no meio de áreas controladas pelos bósnios sérvios, perto da fronteira com a Sérvia.
A força de paz da ONU em Srebrenica era formada por cerca de 600 soldados holandeses. Entre eles, estava o tenente Wim Dijkema, que, anos mais tarde, foi entrevistado pelo programa Witness History da BBC. Ele chegou a Srebrenica em janeiro de 1995.
“Era inverno. As pessoas lá dentro, os muçulmanos, estavam realmente sofrendo. A primeira coisa que me lembro é de uma senhora muito idosa, sem casaco, com sapatos ruins caindo ao pedaços, andando na neve. Eu vi que a situação ali era bem pior do que eu pensava”, relatou Dijkema.
Entre as dezenas de milhares de muçulmanos bósnios que se refugiaram em Srebrenica estava Hasan Nuhanovic e sua família. Ele trabalhava como tradutor para a ONU e também foi entrevistado, anos mais tarde, pelo programa Witness History, da BBC.
“A gente estava sofrendo, enfrentou três anos de fome, guerra e horror. E a população local estava sempre perguntando aos soldados da ONU: ‘O que vai acontecer se os sérvios atacarem novamente?’. E eles respondiam ‘agora há jatos da Otan sobrevoando a Bósnia, é só a gente chamar eles que em 5, 10 ou 15 minutos eles chegam e destroem qualquer força de ataque’ .
Mas no início de julho de 1995, apesar da ameaça de bombardeios da Otan, as forças sérvias avançaram sobre Srebrenica.
“De repente, em uma manhã de sábado, apareceu um tanque a 100 metros de um posto avançado nosso”, contou Wim Dijkema. “Alguém desceu do tanque e gritou: ‘Vocês tem 10 minutos para deixar o posto de observação. Depois vamos atirar e tomar o posto’. Sete minutos depois, o tanque disparou e metade do posto de observação havia sumido.”
Os soldados holandeses começaram a recuar de seus postos avançados, e os sérvios, a avançar. Pouco depois, 30 soldados holandeses se renderam aos sérvios e foram tomados como reféns. A força da ONU apelou para sua principal arma, a capacidade de convocar ataques aéreos, e pediu um ataque massivo às posições sérvias na manhã de 11 de julho. Mas esse ataque não veio. À tarde, os aviões apareceram, mas lançaram apenas duas bombas. Os sérvios ameaçaram então matar os seus reféns holandeses e não houve mais ataques aéreos.

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A essa altura, milhares de bósnios muçulmanos em pânico fugiram de Srebrenica e caminharam em direção ao norte, até o quartel das forças de manutenção da paz da ONU, no vilarejo vizinho de Potocari. Sobrecarregados, os soldados holandeses em Potocari deixaram entrar algumas centenas de refugiados, entre eles, o pai, a mãe e o irmão mais novo de Hasan, Muhammad. Mas outros 20 mil tiveram de ficar do lado de fora do complexo.
Na tarde de 11 de julho, as forças bósnias sérvias, comandadas pelo general Ratko Mladic, tomaram Srebrenica.
Poucas horas depois, elas estavam na porta da base da ONU em Potocari.
“Eles trouxeram ônibus e caminhões e percebi que iriam começar a deportar mulheres e crianças pequenas” contou Nuhanovic. “Estávamos dentro desta base da ONU e aquele era o único lugar seguro em toda a região.”
“Tradutores como eu, funcionários da ONU, estavam autorizados a permanecer na base. Se eu não conseguisse salvar a vida de todos os três membros da minha família, daria prioridade a vida do meu irmão. E meus pais concordaram com esse plano.”
Nuhanovic disse ter implorado às forças de paz holandesas que adicionassem o nome de seu irmão à lista de funcionários da ONU. Mas eles se recusaram. No dia seguinte, ao meio-dia, as forças de manutenção da paz entraram no salão onde os refugiados estavam e entregaram megafones a Nuhanovic e aos outros tradutores.
“Eles me deram a ordem de dizer às pessoas que elas deveriam começar a deixar a base em grupos de cinco. As mulheres que estavam com suas filhas adolescentes estavam apavoradas, porque todos tinham ouvido sobre os estupros cometidos fora da base. As pessoas me perguntavam: Hasan, o que vai acontecer com a gente?’. E eu respondia: ‘Provavelmente vão matar todos os homens e meninos e permitirão que as mulheres e as crianças sejam deportadas’. Isto é o que eu estava dizendo às pessoas.”
Lentamente, os refugiados formaram uma longa fila saindo da base para se juntar aos milhares de refugiados do lado de fora. Os pais e o irmão de Nuhanovic foram os últimos a sair do complexo.
“Quase não havia mais refugiados dentro da base, e eu tentei manter meus pais ali comigo, no meio dos observadores da ONU. Mas três deles e três soldados holandeses com fuzis me disseram: ‘Hasan, diga à sua família para ir embora’. Esses eram colegas com quem tinha trabalhado todos os dias nos últimos seis meses”, contou ele.

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Do lado de fora, os sérvios bósnios estavam separando homens e meninos das mulheres e crianças. As mulheres e crianças eram colocadas em ônibus e levadas ao território controlado pelos bósnios muçulmanos no oeste da Bósnia.
Já os homens e meninos bósnios muçulmanos, não apenas os que estavam no grupo de refugiados em Potocari, como também os que foram detidos em outras partes do enclave de Srebrenica, eram presos e levados para escolas ou galpões de fábricas ou fazendas. O próprio general Mladic se encontrou com grupos de homens detidos e dizia que eles eram prisioneiros de guerra e que seriam trocados por outros prisioneiros. Mas de lá, eles desapareceram.
Foi quando começaram a surgir relatos de execuções em massa na região. A Secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright, foi às Nações Unidas alertar que “surgiram evidências convincentes de que foram cometidas atrocidades em larga escala contra civis indefesos nessa área, longe dos campos de batalha”.
Albright mostrou imagens de satélite do que pareciam ser valas comuns perto de Srebrenica. Essas fotos chamaram a atenção do então jovem repórter e correspondente de guerra americano David Rohde.
“Era uma série de fotos mostrando um campo de futebol, antes e depois. Depois da queda de Srebrenica, as fotos mostravam a terra revolvida, do que pareciam ser grandes valas comuns escavadas ao redor desse campo de futebol, num vilarejo chamado Nova Kasaba”, contou Rohde, que, na época, estava cobrindo o conflito para o jornal americano Christian Science Monitor, à BBC.
Ele resolveu investigar as supostas atrocidades, alugou um carro e se dirigiu ao vilarejo de Nova Kasaba, o local do campo de futebol nas fotos americanas, a oeste de Potocari.
“O leste da Bósnia é uma região linda, com colinas ondulantes e florestas. E era um dia de verão bastante tranquilo, mas eu estava extremamente nervoso com a possibilidade de ser notado pelas forças sérvias”, relatou.
“Encontrei escavações recentes em quatro áreas diferentes. Achei duas caixas de munição vazias. Um pedaço de papel, com algo escrito — na verdade, era uma anotação de uma reunião municipal em Srebrenica antes da queda da cidade. Também achei um diploma de escola com um nome muçulmano. Mas a evidência mais decisiva desta primeira visita, foi quando vi, numa das escavações recentes, algo que tinha sido enterrado, mas estava saindo do chão: parte de uma perna humana em decomposição.”
“Fiquei chocado. À certa altura, um caminhão cheio de soldados sérvios bósnios passou por mim, mas eu acenei para eles, para tentar não levantar suspeita, e eles seguiram em frente”, disse o jornalista americano.

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David Rohde enviou uma reportagem sobre seu achado e recebeu permissão do jornal para continuar investigando. Ele então visitou um campo de refugiados, onde encontrou testemunhas, homens que sobreviveram aos acontecimentos em Srebrenica. Enquanto ele entrevistava essas testemunhas, Rohde começou a perceber que poderia haver mais valas comuns na região.
“Os números que os sobreviventes me deram somavam milhares de mortos, achei isso difícil de acreditar, achava que tinham sido apenas centenas, o número não poderia ser tão alto quanto eles diziam. Mas o que me preocupou é que falei com nove sobreviventes, e vários deles falaram de execuções. E em entrevistas separadas, alguns me deram descrições detalhadas de um mesmo local.”
O testemunho de dois homens em particular chamou a atenção de Rohde.
“Mevludin Oric e Hurem Sulhjic descreveram uma execução à qual sobreviveram. Eles foram primeiro levados para uma escola e, depois de permanecerem ali por várias horas, foram colocados na traseira de uma caminhonete, cerca de uma dúzia de cada vez. De lá, eram levados por cerca de um quilômetro e meio e retirados da caminhonete. Eles foram vendados, alinhados e executados a tiros”, contou Rohde.
“Os dois contaram que ficaram embaixo de corpos por horas seguidas, com formigas rastejando sobre eles. Mevludin se escondeu sob o cadáver de seu primo, se fingindo de morto. À noite, eles emergiram dessa pilha de cadáveres e, juntos, saíram da área. E descreveram a local da execução, dizendo que tinham cruzado um entroncamento de trilhos de uma ferrovia. Eu resolvi então tentar achar esse lugar, e ver se Hurem e Mevludin estavam mesmo dizendo a verdade.”
Rohde enviou outra reportagem baseada nos relatos das testemunhas oculares. Então, com ajuda de um oficial da inteligência ocidental, elaborou um mapa com a localização de possíveis outras valas comuns. Determinado, ele regressou sozinho à área em torno de Srebenica. Ele queria encontrar o local mencionado por Mevludin Oric e Hurem Sulhjic.
“Levei um bom tempo para encontrar o lugar, achei o tal entroncamento com vários trilhos. Encontrei ali uma grande faixa de terra recém-revolvida. E espalhados sobre essa terra, encontrei algumas boinas e sapatos. Os homens muçulmanos bósnios tendem a usar boinas. Numa floresta ali perto encontrei uma pilha de roupas. Havia três bengalas naquela pilha, confirmando relatos de que homens mais velhos também tinham sido mortos. Portanto, o local da execução devia ser entre a faixa de terra recém escavada e o local das roupas e bengalas. Quando eu estava saindo, vi que do outro lado da estrada havia uma escola. Ou seja, estava claro que tudo o que as duas testemunhas tinham dito era verdade”, afirmou Rohde.
“Fui então para o segundo local, que era uma barragem de terra. Chegando ali, achei ossos e estava pegando minha câmera para tirar fotos quando, de repente, ouvi alguém gritando, dizendo para eu não me mexer senão ele atiraria em mim. Fiquei furioso comigo mesmo, porque sabia que tinha ido longe demais.”
“Eu tinha uma câmera, um filme e um mapa com marcações. Os sérvios não acreditaram que eu era jornalista, achavam que eu era um espião da Otan. Basicamente naquela noite eles me fizeram ficar de pé no centro de uma sala e não me deixaram dormir. Eles achavam que, à medida que eu ficava cada vez mais cansado, acabaria mudando minha história. Foi um belo desafio continuar acertando os nomes todos e mantendo consistência na minha história”, disse.
“Havia um guarda que era particularmente hostil, ele tinha uma faca enorme, e ficava limpando as unhas com aquela faca. Um outro guarda bonzinho insinuava que me deixaria sozinho com aquele guarda mau se não contasse a verdade. Mas isso nunca aconteceu, para crédito dos sérvios bósnios, nunca fui abusado fisicamente”, concluiu o jornalista.

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David Rohde finalmente convenceu seus interrogadores de que era apenas um jornalista. Ele recebeu uma sentença curta de prisão por entrada ilegal em território bósnio sérvio. Mas, por sorte, sua prisão veio durante as negociações finais de paz que acabaram encerrando a guerra da Bósnia.
Os negociadores americanos conseguiram pressionar o então presidente da Sérvia e Montenegro Slobodan Milosevic a libertar David Rohde. Ele escreveu outras reportagens sobre o massacre de Srebrenica e ganhou o Prêmio Pulitzer, um dos mais importantes prêmios dados a jornalistas nos Estados Unidos.
Mais de 8 mil homens e meninos bósnios muçulmanos foram executados no enclave de Srebrenica em julho de 1995, pelo Exército bósnio sérvio, comandado pelo general Ratko Mladic. Anos mais tarde, ele o presidente da República Sérvia da Bósnia, Radovan Karadzic, foram condenados à prisão perpétua por genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade por um tribunal internacional de crimes de guerra em Haia.
A Guerra da Bósnia deixou cerca de 100 mil mortos e obrigou mais de 2 milhões de pessoas, cerca de metade da população do país, a deixar suas casas. O acordo de paz de Dayton, assinado em dezembro de 1995, estabeleceu um país, Bósnia e Herzegovina, com duas regiões autônomas.
No oeste, a Federação da Bósnia e Herzegovina, de população principalmente bósnia muçulmana e croata, e no leste, a República Sérvia, de população majoritariamente sérvia.
A situação em Bósnia e Herzegovina hoje é estável, porém tensa, por causa de ambições separatistas de lideranças da Republica Sérvia.