Um inimigo invisível e silencioso ronda os campos do Noroeste do Paraná. A chamada deriva de agrotóxicos desafia a criação do bicho-da-seda e preocupa produtores do estado, responsável por mais de 80% da produção brasileira e referência mundial em qualidade dos fios.
A deriva ocorre quando o defensivo pulverizado em lavouras vizinhas cruza a cerca e atinge locais indesejados. Entre eles, as folhas da amoreira que alimentam as larvas de primeira idade.
“No fim de 2024, mais de 15 milhões de lagartas do bicho-da-seda morreram antes da entrega aos sericicultores”, conta Renata Amano, CEO da Bratac Seda, única fiação de seda em escala industrial do Hemisfério Ocidental. A principal unidade da companhia fica em Londrina, no Norte do Paraná.
Segundo ela, a Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar) e o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar) detectaram resíduos de defensivos em folhas de amoreira.
Em cidades como Cruzeiro do Sul, Alto Paraná e Nova Esperança, maior produtora de seda da América Latina, houve perdas de toda a produção por causa da deriva, diz a executiva.
A presidente da Associação dos Criadores do Bicho-da-Seda de Nova Esperança e Regiões Sericícolas do Paraná (Acesp), Sandra Manieri, reforça o impacto: “A perda ocorre em toda a cadeia, não só na sericicultura. O comércio é prejudicado, muitas famílias de agricultores vão embora do campo, trabalhadores perdem o emprego, o governo deixa de arrecadar”.
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Produção em queda, planos de retomada
A produção de casulos no Paraná caiu praticamente pela metade em apenas quatro anos, de 2.175 quilos em 2020/21 para 1.183 quilos em 2024/25. Somente na última safra, a queda foi de 25% – não bastasse a deriva, os produtores tiveram de enfrentar os impactos de geada e estiagem.
Mesmo assim, a Bratac Seda projeta crescimento de produção para 1.800 quilos de casulos no ciclo 2026/27, com estabilidade no número de famílias ocupadas na atividade – que pela estimativa da empresa passará de 1.167 para 1.175.

“Acreditamos nos programas que o governo do Paraná colocou em prática exclusivamente para a sericicultura através do IDR Paraná e da intensificação das fiscalizações pela Adapar”, afirma Renata Amano.
Ela também aposta em pesquisas acadêmicas apoiadas pelas secretarias estaduais de Agricultura e de Ciência e Tecnologia. Projetos como o Seda Brasil – O Fio que Transforma trouxeram patentes e estudos sobre mudanças climáticas, enquanto o NAPI Sericicultura – Novos Arranjos de Pesquisa e Inovação, dedicados a projetos que buscam a melhoria do setor – busca combater a deriva de agrotóxicos e desenvolver protocolos contra doenças genéticas.
Por que o fio de seda brasileiro é o melhor do mundo
O Paraná lidera com folga a sericicultura no país: responde por aproximadamente 86% da produção total. São Paulo (10%) e Mato Grosso (4%) produzem o restante.
Apesar dos desafios, o fio paranaense mantém sua reputação internacional. A Hermès, grife francesa que desde 2006 usa exclusivamente seda brasileira em seus lenços, reconhece a qualidade da fibra que nasce em pequenas propriedades familiares.
O segredo está na combinação única de clima, genética aperfeiçoada por décadas e disciplina quase artesanal dos criadores. O resultado: 95% dos casulos atingem padrão de primeira qualidade, com em média 1.200 metros de fio ininterrupto. Na Ásia, menos da metade da produção chega a esse nível. Daí a fama do fio de seda brasileiro como o melhor do mundo.
A rotina é rigorosa. Produtores acordam antes do amanhecer para colher folhas frescas de amoreira — única alimentação aceita pelo bicho-da-seda — e repetem o processo várias vezes ao dia durante o ciclo de crescimento. No fim, a lagarta passa três a quatro dias tecendo seu casulo.

Seda do Paraná abastece mercado de luxo no Japão, França e Itália
Fundada há 85 anos, a Bratac mantém contratos de longa data com o mercado de luxo no Japão, Itália e França. Nos últimos anos, também passou a trabalhar com startups da França e dos Estados Unidos para desenvolver usos inovadores da seda em medicina, cosmética, biotecnologia e alimentos.
“O tarifaço americano postergou a consolidação desses mercados com inovação da seda como bioinsumo tecnológico, mas acreditamos que em breve conseguiremos retomar as iniciativas e exportar para novos segmentos de mercado”, diz a CEO da empresa.
A indústria da seda já contou com 16 fiações no Brasil; hoje, só resta a Bratac. “O mundo da seda sempre foi muito extenso mas, ao mesmo tempo, muito concentrado em know-how e tradição. Não é à toa que 15 fiações faliram com o êxodo rural e o advento dos tecidos sintéticos no início dos anos 2000″, afirma a executiva.
“A Bratac Seda sobreviveu sozinha no meio de tantos desafios. Estamos sempre trabalhando intensamente na continuidade da cadeia produtiva para que as soluções implantadas sejam frutíferas e lucrativas para todos os envolvidos”, acrescenta.

Para crescer, a empresa aposta em produtividade e no apoio de prefeituras incluídas na Rota do Progresso — programa estadual que incentiva áreas rurais vulneráveis com barracões, infraestrutura e adubação orgânica.
Agricultura familiar com renda garantida
Para os pequenos produtores, a sericicultura continua sendo uma opção estável e rentável. O ciclo de 25 dias permite até nove safras por ano, garantindo fluxo constante de renda.
“Como produz nove vezes no ano, se der tudo certo, a renda é muito boa. Sem contar que o custo é baixo. Além disso, é uma cultura que exige uma área pequena, ideal para a agricultura familiar”, diz Sandra Manieri, da Acesp.

Rosi Rodrigues de Freitas é um exemplo. Ex-gerente comercial em Curitiba, mudou-se para Cianorte com a família para dedicar-se ao setor. “Antes, em um barracão simples, nós produzíamos mil quilos. Hoje produzimos perto de 4 mil quilos”, conta. “Nossa renda se multiplicou por quatro.”
Ela não cogita deixar a atividade: “Não trocamos por nada. Nem a soja ganha. Fora que o bicho-da-seda tem o selo orgânico: não prejudica o meio ambiente e muito menos a nossa saúde”.
A Associação Brasileira da Seda (Abraseda) dá suporte à certificação orgânica segundo padrões internacionais, como os dos Estados Unidos (USDA-NOP). A Bratac garante o fornecimento das variedades de amoreira adequadas a cada região.

Orgulho paranaense
Entre obstáculos e conquistas, a sericicultura segue firme como um traço identitário do Paraná. É um setor que sobrevive graças ao empenho de famílias que tratam o bicho-da-seda como parte da própria vida.
Desafiados pelo inimigo invisível da deriva, esses “bichos do Paraná” — lagartas e produtores — seguem tecendo, juntos, um fio que continua a encantar o mundo, como que embalados pela canção de João Lopes: “A gente que nasceu no mato / No mato tem que morar / No mato a gente se ajeita / Tudo o que se planta, dá”.