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quarta-feira, setembro 3, 2025

A CASA DA Sra. H – Revista Cult

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A primeira vez que ouvi falar do nome Hilda Hilst foi em 1979, em uma matéria do programa Fantástico, na qual ela afirmava se comunicar com mortos. Eu tinha 10 anos e aquilo me assombrou durante semanas, meses. Afinal, quem era aquela mulher que escrevia e vivia praticamente isolada, cercada de cachorros, em uma chácara chamada Casa do Sol; e que nomeava Deus pelos mais diversos nomes, como Relincho do Infinito, Grande Obscuro, Sorvete Almiscarado, Lúteo-Rajado, Querubim Gozoso, O Mudo Sempre e Caracol de Fogo?

Corta. Já adolescente na década de 1980, depois de ter acesso e ler alguns de seus livros lá em Maceió, decidi que iria conhecê-la pessoalmente. Aos 21 anos, saí de Alagoas – de ônibus – para São Paulo com uma ideia fixa: ser o secretário de Hilda Hilst. Cheguei em outubro de 1990, fui morar em uma pensão perto da Avenida Paulista, de onde, de um orelhão liguei três vezes para a Casa do Sol, o único número de telefone que até hoje nunca esqueci, e que havia conseguido por intermédio de um amigo, o ator, cineasta, editor, professor e poeta alagoano Nilton Resende, que morava nessa mesma pensão e tinha vindo antes de mim para conhecer a Lygia Fagundes Telles, que era muito amiga de Hilda.

Só na terceira vez que liguei foi que ela atendeu, lhe disse meu nome e que tinha vindo de Alagoas para conhecê-la. Hilda me convidou para ir à Casa do Sol. Nos conhecemos em um final de semana de novembro de 1990, e em março do ano seguinte ela me convidou para morar e trabalhar com ela em troca de casa, comida e tempo. “Dinheiro eu não tenho, mas você vai perceber mais velho que o tempo é mais valioso que o dinheiro”.

Há 35 anos, pisei pela primeira vez na Casa do Sol, em Campinas, que décadas depois foi tombada como patrimônio histórico e se tornou um instituto, que agora retorna à cena cultural do país após uma reforma que durou cerca de dois anos. Foi uma ferramenta essencial de política urbana e cultural que ajudou a preservar, restaurar e valorizar mais de seis décadas de história de um patrimônio de valor material e imaterial incomensurável, o Termo de Transferência de Potencial Construtivo (TPC).

O TPC é um instrumento urbanístico que permite que proprietários de imóveis tombados ou de interesse artístico, cultural e histórico cedam o potencial construtivo não utilizado de seus terrenos a outros empreendimentos, em troca de contrapartidas que viabilizam a manutenção e a conservação desses bens. Na prática, esse mecanismo opera criando uma rede de benefícios coletivos: ao mesmo tempo em que assegura a proteção de edificações de valor simbólico, também estimula o investimento em novas construções em outras áreas da cidade. De certo modo, o TCP proporciona um equilíbrio saudável entre desenvolvimento imobiliário e preservação cultural, criando condições para que a arte e a cultura se mantenham acessíveis e integradas ao cotidiano urbano. Na entrevista com Daniel Fuentes, presidente do instituto, ele fala mais sobre o Termo e seu uso no projeto.

 

Entre um Kant e outro – o público e o privado

O instituto, que também é casa, abriga em si essa singularidade que borra a fronteira entre o público e o privado. Entre a ficção e a fricção, ele também é um lugar de tensões e negociações constantes. Como eu adoro um trocadilho, não posso deixar de lembrar de quando fico quieto no meu Kant. De um lado a casa que é abrigo, toca, templo, território da odisseia do cotidiano; do outro a instituição regida por normas, regras que abraçam o interesse coletivo, e que embora seja um lugar de compartilhamento, também é de autoridade.

Quando esses limites se encontram, formam uma encruzilhada, onde manifesta-se uma zona híbrida na qual o tornar-se público requer não perder sua intimidade, seu caráter doméstico; e o espaço é reconfigurado para além de suas memórias, permitindo que o privado converse com o público (em seu sentido mais amplo, incluindo as pessoas), e assim deixam de ser espaços opostos e se transformam em forças complementares. Entre ser casa e também instituição, cria-se uma zona fértil de experimentações estéticas, novas formas de convivência e de pertencimento.

Foram quase dois anos para desenvolver o projeto e realizar a captação de recursos para a Casa do Sol. Até que em fevereiro de 2024 tudo começou – de fora para dentro. A obra se iniciou na parte externa com o restauro do telhado, do piso da enorme varanda que abraça a casa, com a criação de uma passagem para acessibilidade, a reforma dos antigos canis (que na década de 1990 chegou a abrigar mais de 50 cachorros) e a construção de duas novas suítes para residências artísticas (alinhando modernidade, mas preservando a atmosfera monástica da casa). Vale lembrar que o projeto abrangia os 10 mil metros quadrados da área, inclusive os jardins, com uma infinidade de espécies que também foram fotografadas e catalogadas.

Concomitantemente, nas áreas internas, havia uma coordenação para inventariar e guardar todo o mobiliário, objetos e obras de arte. Móveis saíram para restauro e todo o acervo fotografado e catalogado minuciosamente. Para se ter uma ideia, na mesa do altar, na sala principal, cerca de 400 objetos foram retirados de seu lugar original e devolvidos meses depois tal como estavam. Toda a parte elétrica e hidráulica, assim como os pisos, também foram limpos e restaurados. Durante mais de um ano e meio, havia uma equipe de dez pessoas morando e trabalhando na casa, todas capitaneadas por Mariana Falqueiro, arquiteta e coordenadora geral do projeto.

Durante todo o período da execução da reforma e do restauro, Olga Bilenky, vice-presidente do IHH (mãe de Daniel Fuentes, artista visual e amiga de Hilda desde os anos 1970) morou na casa, acompanhando de perto todas as etapas do cronograma do projeto.

As Hilstianas

Nesse novo momento de sua existência, a Casa do Sol/IHH também conta com um núcleo educativo, com uma biblioteca circulante que reúne diversos autores contemporâneos, além de continuar com suas visitas guiadas e, principalmente, com o projeto de residência artística, que foi criado por mim, Olga e Daniel em 2012. Lembrando que as residências não são apenas para escritores ou poetas, mas também contempla outras linguagens como artes visuais, cinema, dramaturgia, música e outras. A proposta é manter o espírito de Hilda, que recebeu desde escritores até matemáticos e atores.

No final de semana dos dias 23 e 24 de agosto acontece a reabertura oficial com o evento “Hilstianas” que, entre outras atividades, contempla uma feira de livros com editoras como Fósforo, Quelônio, Relicário e Ubu, além da livraria e espaço cultural Candieiro, de Campinas.

O hic et nunc.

O passado, o presente e o futuro coexistem. A Hilda Hilst homenageada em 2018 na Flip, aquela com múltiplas facetas (além da escritora, poeta, dramaturga, cronista e desenhista), após mais de 20 anos da sua morte, o seu legado, seu espírito, o seu zeitgeist continua vivo por intermédio de seus herdeiros, da sua família eletiva. Foi durante os anos que convivi com ela nesse espaço atemporal, mágico e solar que mais fui feliz em 55 anos de vida. Também foi o período que mais li. Foram cerca de 300 livros lidos; a maioria indicado por ela ou pinçado da sua biblioteca particular. E grande parte motivo de várias conversas nas noites, enquanto assistíamos o Jornal Nacional e a novela das nove, bebendo uísque e fumando nossos cigarros.

Durante os últimos anos de vida, Hilda se interessava cada vez mais pela física quântica (lembrando que dentre seus amigos mais próximos havia o pernambucano Mário Schenberg, considerado o maior físico do país). Em uma entrevista, ela disse que o neutrino demorou para ser descoberto porque é um elemento que não tem propriedades físicas, nem massa, nem carga elétrica e nem campo magnético, e que só pode ser detectado quando colide com outro elemento. E completou afirmando que “o ato de escrever tem muita coisa do neutrino. A gente escreve e vai atravessando os corpos mais densos e opacos possíveis, até que se encontre um elemento de colisão. Então, para esse elemento, tudo o que dissemos e que pareceu incompreensível, obscuro, torna-se claro, rutilante”.

Durante o tempo que convivi pessoalmente com Hilda Hilst – e até hoje convivendo, estudando e relendo a sua obra – eu sempre colido comigo e com o mundo. Tento. Na maioria das vezes tenho sorte. As coisas, as palavras, perguntas e respostas tornam-se mais claras, cada vez mais luzentes. Assim como é a obra de Hilda.

Jurandy Valença, 21 de agosto de 2025

Jurandy Valença é curador, jornalista e gestor cultural. Foi diretor da Biblioteca Mário de Andrade, diretor adjunto do CCSP, coordenador dos centros culturais e teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e diretor de projetos do Instituto Cultural Hilda Hilst



[Fonte Original]

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