Um simpático papagaio apresenta o samba, a cachaça e lista mais de vinte áreas do Rio de Janeiro ao confuso pato americano, que luta para entender o que lhe é dito somente com ajuda de um dicionário português-inglês.
É assim que Zé Carioca, criação de Walt Disney, apareceu para o mundo no filme Alô, Amigos (1942). O personagem nasceu a partir de uma série de “retratos” brasileiros com que Disney travou contato nos vinte e poucos dias que passou no Rio de Janeiro. Do cartunista José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950) ao advogado Manuel Vicente Alves (1869-1948), várias figuras emblemáticas e ilustres do país serviram para compor o pot-pourri de características da famosa ave.
Rapidamente caiu no gosto popular e não demorou a aparecer em quadrinhos aqui e em países como a Holanda, Itália e Alemanha. Mesmo com outro nome, Joe Carioca, a personalidade do papagaio não muda nos quadrinhos europeus: Joe inventa falsas identidades para conquistar garotas e descolar jantares grátis em restaurantes de luxo.
Nos gibis brasileiros, nada diferente. Desenhistas como o brasileiro Eli Leon exportaram historietas, uma delas, icônica, é Magia do Carnaval (1991). Nela, toca um samba-enredo com a seguinte letra:
“O Zé pede passagem
Para mostrar sua preguiça
E seu presente de vadiagem
Defendendo a letargia…”
Em 2022, quando Zé completou 80 anos, houve mais uma tentativa de redimir o pássaro e tirar o peso da caricatura, feita numa época de generalizações culturais e estigmas construídos por nações hegemônicas.
Mas Zé não está só. Além dele, há outros como Pedro Malasartes, Didi e, claro, Macunaíma. Como destaca Sérgio Medeiros em Makunaíma e Jurupari: Cosmogonias Ameríndias (2002), esse herói de caráter intrigante é um” grande transformador”, ora com boas intenções, ora levado pelo desejo de poder, como quando ainda menino desafia seu irmão mais velho Jigué, e se transforma num adulto para dormir com a cunhada. Outras vezes ele é movido pelo tédio. Mas, na maioria dos casos, as transformações de Macunaíma se dão pela sua necessidade de consertar os próprios erros.
Mário de Andrade se apaixonou pelo caráter singular do herói, o que o levou a escrever sobre ele porque “percebi que Macunaíma era um herói sem nenhum caráter nem moral nem psicológico, achei enormemente comovente nem sei porque, de certo pelo ineditismo do fato, ou por ele concordar um bocado com a época nossa, não sei”. A primeira frase do Macunaíma de Mário de Andrade é: “Ai! que preguiça”, e muitos críticos reconhecem nela uma crítica à industrialização do Brasil, que exigia redução do lazer dos seus operários.
O Brasil não é feito de 212 milhões de “Josés/Marias Cariocas” ou de Macunaímas, esse é um fato inegável. Somos multifacetados, com origens diversas e hábitos variados, do Oiapoque ao Chuí. Por isso, estabelecer qualquer retrato fechado de um país tão complexo e paradoxal cairá, invariavelmente, num equívoco.
No entanto, muito se discutiu, e ainda se discute, sobre o lendário “jeitinho”, a “Lei de Gerson” (levar vantagem em tudo) e o célebre “carteiraço” (“Você sabe com quem está falando?”). Ainda que em pontos distintos, esses fenômenos parecem não sair totalmente da nossa idiossincrasia, refletindo a divergência entre o que as leis e a ética determinam e as práticas sociais verdadeiramente materializam. Aliás, cada uma dessas “estratégias” são tão intrincadas e carregam tantas nuanças quanto o nosso próprio povo.
Como afirma Lívia Barbosa, em O jeitinho brasileiro: A arte de ser mais igual do que os outros (2005), os três estratagemas estão ancorados na herança do dogmatismo católico dos jesuítas, na desigualdade social e na estupidez burocrática, além de representarem um sintoma de sobrevivência necessária perante cenários de carência econômica e social. Supostamente, a modernidade e o progresso tecnológico teriam ajudado a apagar, ao menos parcialmente, esses desafios e assimetrias, não somente intra-brasilis, mas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Não é o que ocorreu, entretanto.
O recente episódio envolvendo os preços estratosféricos cobrados pelo setor hoteleiro e de alojamentos residenciais de Belém (PA), sede da próxima COP, reacenderam a necessidade de analisarmos o motivo pelo qual, em pleno 2025, ainda recorremos a expedientes duvidosos para “levar algum por fora”. Vale dizer que em Paraty (RJ), durante a FLIP, a situação não era tão crítica, mas seguia a mesma lógica.
Em primeiro lugar, pensemos no evento. A Conferência das Partes (COP) é o maior encontro global de sustentabilidade. Ali se tomam decisões importantes quanto ao futuro do planeta em meio à “multicrise” que nos assola (climática, econômica, política, social, sanitária, moral, entre outras).
Ao menos, ela nasceu com esse propósito.
Pois bem, se a COP cumpre com todos os seus objetivos, é questionável. De todo modo, para o Brasil, em momento crucial e de resistência à pressão estadunidense, era supostamente a oportunidade de se tornar líder na questão ambiental para além dos BRICS.
Mas, aparentemente, queimamos na largada. Uma semana de estadia em Belém, durante a conferência, sai entre 100 mil e 700 mil reais, de acordo com o tipo de alojamento. O governo, legalmente, não pode agir sobre os preços das hospedagens.
Pausa. Corta para o Zé Carioca. O mecanismo de “farinha pouca meu pirão primeiro”, imortalizada na canção de Bezerra da Silva, seria justificado pelo papagaio. Provavelmente ele diria “todo mundo faz, não vou ficar de fora” ou “é a minha chance de sair da pindaíba”.
Corta para Macunaíma. Ele diria “quero transformar tudo em dinheiro para poder gozar da minha preguiça depois”.
Então o controverso episódio da COP30 revela que o brasileiro faz jus ao estereótipo que carrega há séculos? Não da forma que se acredita.
Na verdade, essas construções revelam muito mais nossa carência ancestral, construída e alimentada pelas bases escravocratas e uma legislação que até o século XIX se baseava em princípios felipinos e manuelinos.
Como destacou Roberto DaMatta em Carnavais, malandros e heróis (1978), nossa totalidade histórica é um dilema, em que os papéis de mocinho e vilão se sobrepõem e as fronteiras entre ambos são apagadas. O mocinho é o fazendeiro de café ou o escravo em farrapos que rouba quem lhe subjuga? Os séculos e décadas passam e as instituições fundamentais permanecem as mesmas desde a Pax colonial. Resta às massas caminhar e recusar as posições fixas, adotando a “personalização” das leis que lhe são impostas.
Zé, Pedro, Macunaíma, João. Quando vidas estão hierarquizadas há séculos, passam a habitar um limbo moral e social, pois não renunciam totalmente à ordem nem se enquadram na marginalidade, permanecendo e se alimentando dos interstícios. Sobra invariavelmente a escolha daquela “zona da inconsistência”, que oscila entre coletivo e individual, sendo que este último é o que pesa por fim.
No episódio envolvendo a COP30, culpam-se as pessoas e não o sistema que é a mola mestra da engenhoca, atuando até mesmo no cerne do evento com seus greenwashings e as regras do poluidor-pagador não resolvidas. Resta-nos tirar os falsos pudores da moralidade para entender as complexidades de um sistema social como o brasileiro, inserido num contexto mundial ainda mais obscuro e em constante mudança.
Se nos parece terrível a exploração dos visitantes da COP (ou da Flip), como de fato o é, não nos indigna com a mesma intensidade, por exemplo, a descoberta de petróleo em Santos, sobre o qual não teremos nenhum benefício, pelo contrário. A concessão total de direitos de exploração de petróleo no Bloco Bumerangue dada pelo governo anterior à BP, em 2022, garante à gigante britânica ficar com a “riqueza insustentável”. Para nós, as migalhas e o desastre ambiental. E, claro, o figurino de moralistas seletivos.
No fundo, talvez Zé e Macunaíma nunca tenham existido apenas nas páginas dos gibis ou no livro de Mário de Andrade. Eles atravessam governos, conferências e décadas, mudando de roupa, sotaque e endereço, mas guardando o mesmo instinto de sobreviver nos meandros de um sistema desigual. E enquanto continuarmos a aplaudir ou condenar apenas as caricaturas, esquecendo de encarar a engrenagem que as produz, estaremos sempre prontos para o próximo grande espetáculo, com os mesmos velhos personagens no palco.
E esse é sempre o nosso samba-enredo. Ai que preguiça!
Dirce Waltrick do Amarante é tradutora e ensaísta. Autora, entre outros, de Metáforas da Tradução (Iluminuras). Professora da Universidade Federal de Santa Catarina.
Fedra Rodríguez é tradutora, neurocientista e ensaísta. Traduziu, entre outros, Raymond Roussel, James Joyce e Juan-Eduardo Cirlot.