“Você ama o mal, mais do que o bem, mais a falsidade do que a franqueza. Você ama palavras que corroem, ó língua mentirosa”
(Salmo 52, 5-6)
Dois episódios recentes, aparentemente distantes, ajudam a entender como a mentira se tornou engrenagem central da política e da economia no nosso tempo. O primeiro aconteceu no Brasil: em janeiro de 2025, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) publicou um vídeo nas redes sociais afirmando que o governo federal pretendia taxar as transações realizadas por meio do sistema de pagamentos instantâneos Pix. A gravação, que alcançou mais de 156 milhões de visualizações em apenas 24 horas, foi amplamente compartilhada e gerou uma onda de desinformação. Autoridades esclareceram que a medida proposta visava apenas ampliar a fiscalização de fintechs e não instituir um imposto sobre o Pix, mas a pressão política resultou na revogação da norma pela Receita Federal, dificultando o combate a esquemas de lavagem de dinheiro, como os operados pelo PCC. O vídeo alimentou indignação e impediu que a sociedade acompanhasse uma discussão séria sobre justiça fiscal e regulação, mostrando como a mentira pode ser transformada em ação política com efeitos concretos.
O segundo episódio ocorreu nos Estados Unidos, em Minneapolis, em agosto de 2025: Robin Westman, uma mulher trans de 29 anos, abriu fogo contra uma escola ligada a uma igreja, disparou mais de cem tiros, matou duas crianças, feriu várias pessoas e se suicidou. Em seus escritos e vídeos, Westman expressava ódio antissemita, obsessão por armas e um profundo conflito em relação à sua identidade de gênero. As investigações revelaram que ela vivia imersa em bolhas digitais, alimentadas por algoritmos que promovem teorias conspiratórias, fake news e discursos de ódio. A extrema-direita americana tentou colá-la a uma identidade de esquerda, mas todos os elementos que levaram ao massacre — culto às armas, transfobia internalizada, ressentimento antissemita — nasceram justamente nessas seitas digitais impulsionadas pelo capitalismo da atenção. Plataformas que não apenas reproduzem conteúdos, mas os amplificam, transformando vulnerabilidades pessoais em combustível de violência.
É aqui que os casos convergem. O vídeo sobre o Pix, os ataques ao Banco do Brasil, o massacre de Minneapolis — todos são expressões de um mesmo fenômeno que descrevo como Falsolatria. Trata-se do culto sistemático à distorção da realidade, agora monetizado, algorítmico e financeirizado. A manipulação não é mera opinião; é engrenagem que move fortunas, fortalece facções, arma sujeitos e compromete instituições. Como observa Umberto Eco, “as teorias da conspiração não são mais um divertimento de ociosos, mas um instrumento de poder.” E Hannah Arendt nos oferece a chave para compreender o mecanismo contemporâneo da mentira: “o resultado de uma substituição das verdades factuais por mentiras não é que as mentiras passem a ser aceitas como verdade, e a verdade seja difamada como mentira, mas que o sentido por meio do qual nos orientamos no mundo real — e a categoria de verdade versus falsidade — acaba sendo destruído.” É esse terreno balançado que permite que um vídeo falso bloqueie fiscalização; que boatos corroam a confiança num banco; que comunidades digitais conduzam ao massacre.
A Falsolatria atua de forma dupla. Por um lado, oculta aquilo que não se quer que apareça — a taxação dos mais ricos, a violência estrutural do racismo, a responsabilidade de governos por mortes evitáveis. Por outro, cria inimigos, pânicos, identidades de grupo baseadas no ressentimento. É uma tecnologia de poder que organiza a percepção coletiva e fabrica consensos tóxicos. Se antes a mentira política era episódica, hoje tornou-se metódica. Se antes era um recurso para encobrir escândalos, agora é modo de governo e de acumulação. A economia da desinformação movimenta bilhões, remunera influenciadores, financia campanhas e sustenta partidos de extrema-direita que se apresentam como paladinos da “verdade”.
No entanto, esse fenômeno não se sustenta sozinho. Apoia-se em plataformas digitais cujo modelo de negócio é a amplificação do ódio e das falsas narrativas, e se articula a uma base social predisposta a crer. Essa predisposição não é natural: é cultivada, nutrida por crises econômicas, pela precariedade da vida, pelo ressentimento de setores que perderam privilégios. O campo democrático precisa ser firme. Não basta desmentir pontualmente; é preciso enfrentar a máquina que produz e sustenta a distorção da realidade. Isso implica regulação das plataformas, responsabilização dos propagadores e, sobretudo, construção de uma esfera pública em que a verdade factual recupere centralidade.
A Falsolatria não desaparecerá sozinha. Seu combate exige coragem intelectual, articulação política e resistência cidadã. Porque, quando a mentira deixa de ser apenas instrumento retórico e se converte em estrutura de poder, o risco não é apenas a erosão da democracia, mas a destruição da própria realidade compartilhada.
Jean Wyllys é jornalista, escritor e artista visual. Autor, entre outros livros, de “O anonimato dos afetos escondidos” (Tusquest, 2025) e “Falsolatria” (Editora Nós e Edições Sesc SP)
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