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quarta-feira, setembro 3, 2025

A potência da crueldade: A origem inexplorada – Revista Cult

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O debate sobre a crueldade não emerge diretamente da psicanálise, tampouco figurava entre as preocupações inaugurais de Sigmund Freud. No entanto, é inegável que, após o advento da psicanálise, essa noção jamais voltou a ocupar o mesmo lugar no pensamento ocidental.

Por sua relevância no cenário atual – marcado pelo dilaceramento do humano, por guerras, pela ânsia desenfreada de poder e pela devastação dos recursos vitais do mundo –, propomos retomar a reflexão freudiana sobre a crueldade, na tentativa de dela extrair alguma lição.

Longe de reconstituirmos toda a trajetória psicanalítica da crueldade, vamos nos concentrar em uma de suas faces menos exploradas – e talvez ainda pouco reconhecidas: a da crueldade em sua forma não sexual. Uma dimensão que não se confunde com a pulsão de morte e que remete à esquecida pulsão de apoderamento, verdadeiro ponto cego da teoria e da clínica.

Relembremos que Freud emprega, a princípio, o termo Grausamkeit (crueldade) em A interpretação dos sonhos, obra inaugural, para descrever a tendência humana a infligir dor presente em determinados conteúdos oníricos.

Na mesma obra, Freud menciona a crueldade no mito da Titanomaquia, que narra o combate de Zeus contra Cronos, seu pai, em uma luta pela sobrevivência. Para não ser extinto, Zeus precisa destroná-lo. Esse episódio mítico já carrega um indício daquilo que Freud, mais tarde, reconheceria como uma crueldade independente da sexualidade originária, já que participa diretamente das origens da formação da subjetividade e da civilização – aspecto que abordará sob a figura do mito da “horda primitiva”. Em ambos os casos – e em tantos outros –, permanece a marca da força, da violência e do uso do próprio corpo e de seus sacrifícios como forma de obter poder.

É esse mesmo traço – o desejo de poder – que, no mito da horda primitiva, conduz os filhos a assassinarem o pai e devorarem sua carne. Um gesto inaugural que, não por acaso, ressoa na etimologia latina da crueldade: crudelitas, derivada de crudus, a carne crua. Os ecos desse gesto atravessam o século e reverberam, décadas depois, no célebre intercâmbio epistolar entre Freud e Einstein, quando se formula a pergunta ainda urgente: por que a guerra?

Nas últimas décadas, o debate psicanalítico tratou bastante da crueldade como uma manifestação da sexualidade, na obtenção de prazer. Consolidou-se a noção de uma crueldade erótica, ao lado da ideia, igualmente difundida, de que a crueldade seria uma das faces da pulsão de morte: ora como força que elimina os obstáculos à satisfação, ora como impulso extremo rumo à tensão zero, ao apagamento absoluto.

Nossa investigação, porém, segue por outra via. Buscamos iluminar uma dimensão ainda pouco explorada da crueldade: sua existência independente – sendo anterior – à instauração do princípio do prazer. A leitura nasce com Freud, que soube reconhecer sua condição assexual, sinalizando uma força que não se submete de imediato à economia do desejo, que lhe é anterior, inaugural da organização pulsional.

Essa abordagem já encontra respaldo nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, quando Freud associa o sadismo e o masoquismo a modos ativo e passivo de busca de satisfação – formas em que a alteridade é ignorada ou reduzida a um instrumento. No entanto, é no entrelaçamento entre as pulsões de autoconservação e a sexualidade que Freud introduz a noção de um aparelho de apoderamento (Bemächtigungsapparat). A partir dessa formulação, ele nomeia uma categoria pulsional autônoma: a pulsão de apoderamento (Bemächtigungstrieb), cuja ação se manifesta nas fases mais arcaicas da constituição psíquica, anteriores à organização genital da sexualidade.

É nesse momento que Freud emprega, pela primeira vez, o termo Bemächtigungstrieb para designar uma força não sexual voltada à organização da vida psíquica em seu estágio pré-genital. O apoderamento é anterior à crueldade, pois, segundo Freud, “o impulso cruel provém da pulsão de apoderamento e emerge na vida sexual em um período no qual os genitais ainda não assumiram seu papel posterior”.

Surpreende que, apesar dessa centralidade, Freud não tenha despertado maior atenção – entre leitores, intérpretes ou pesquisadores – para essa inter-relação. Talvez por ter sido definida como assexual, alheia às grandes categorias pulsionais que se consolidariam posteriormente – Eros e pulsão de morte –, sua força permaneceu pouco explorada na teoria.

A pulsão de apoderamento desponta, assim, como a potência originária da crueldade – uma força que visa, antes de tudo, ao afirmar-se no mundo. Poderíamos figurá-la por uma cabeça de Jano, voltada simultaneamente para Eros e Tânatos, de forma que o apoderamento se inscreve como impulso constitutivo dos dois modos fundamentais do funcionamento pulsional, sem se reduzir a nenhum deles. A crueldade, nesse contexto, surge como uma de suas expressões mais viscerais.

A Bemächtigungstrieb gerou controvérsias de tradução. No campo francófono, a tradução consagrada – proposta por Grunberger – foi pulsion d’emprise. O termo foi lido como uma derivação de Eros, o que dilui sua força autônoma. No Brasil, popularizou-se a “pulsão de dominação”, reducionista a nosso ver, sem as nuances do pensamento freudiano. A solução a restringe a uma expressão da pulsão de morte, o que esvazia a potência disruptiva da formulação original de Freud. Como se vê, entre os francófonos ela tendeu a Eros, enquanto entre os brasileiros pendeu para Tânatos.

É recente o movimento que busca restituir a essa noção sua densidade conceitual original, como indicam alguns trabalhos contemporâneos. Autores como Derrida, Sédat, White – bem como nós mesmos – convergem na recuperação dessa pulsão como uma potência arcaica. Diferentemente das pulsões voltadas à sexualidade ou à morte, o apoderamento se manifesta como força de preservação do Eu, uma resposta primordial à ameaça, um gesto inaugural de resistência subjetiva.

Outra sutileza a ser resguardada é a diferenciação entre a pulsão de apoderamento e a de autoconservação. Sob a ação da pulsão de apoderamento, opera-se um trabalho inaugural de metabolização do mundo externo, mediado pelo aparelho muscular, que cria as condições para o advir do sujeito psicológico. Trata-se, portanto, não apenas de preservar um estado já dado, mas de constituir um estado que, uma vez instaurado, passa a demandar preservação.

Em função disso, a crueldade é um fenômeno do apoderamento, que é sua causa estrutural anterior ao princípio do prazer. Esse entendimento encontra respaldo em Freud, que, em diversas passagens de sua obra, reconheceu que a crueldade não deriva necessariamente da libido. Nesse registro, a crueldade não se submete às leis do prazer, ainda que, em determinados momentos, possa se entrelaçar a elas.

No que se refere ao tema das pulsões, é sempre necessário “tomar o boi pelo chifre”, nomear suas manifestações clinicamente observáveis. Como Eros se imiscui de forma evidente na vida cotidiana, gostaríamos de destacar aqui nossa leitura da pulsão de morte – o último grande enigma deixado por Freud.

Freud fala da pulsão de morte como uma tendência de “retorno ao inorgânico”. Logo vem à mente a aniquilação do ser. Entendemos que uma de suas manifestações clínicas é o impulso de “congelar um instante vivido”, a tentativa de fixar a experiência de maneira imutável, estática. Ímpeto, portanto, de busca de um instante vivido que poderia ser recriado excluindo qualquer alteridade que ameace seu estado, o que afronta o fluxo dinâmico da vida.

Assim, a busca humana por reviver a experiência da infância – por “apoderar-se” dela – reflete a intensidade entrelaçada de Eros e Tânatos. Mas o que se almeja jamais poderá ser reencontrado. Como bem cantou Lulu Santos: “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia”. A crueldade é uma forma manifesta de preservação daquilo que já foi vivido, uma tentativa obstinada de conservar o passado frente ao fluxo inexorável da transformação.

É nesse gesto – o desejo de deter o tempo, cristalizar o que foi vivido – que identificamos uma expressão mais nítida da pulsão de morte. Esta não se reduz à compulsão à repetição, sua forma patológica, mas também a essa inclinação a evitar o devir da experiência, a resistir à transformação intrínseca à vida. A crueldade, nesse cenário, não é mera destruição. Trata-se de uma força originária e criacionista do ser humano, pela qual o bebê resiste ao mundo caótico e insondável de suas primeiras experiências, tornando-o apoderável.

Não por acaso, Freud adverte que, em relação à crueldade, o que trava o desenvolvimento da empatia, ou mesmo da compaixão, é a pulsão de apoderamento. Ela é como um anteparo primitivo do psiquismo, uma proteção arcaica diante da alteridade e da vulnerabilidade. Antes que o sujeito possa desejar, amar ou cuidar, ele precisa se defender. Inicialmente, o Eu aparece como uma defesa.

A crueldade também se inscreve no campo da cultura, é uma condição inerente à vida em comum. Paradoxalmente, a constituição do laço social demanda violência simbólica e material. Afinal, como instituir o social sem recorrer, mesmo que minimamente, a operações de exclusão, apropriação ou aniquilação? Como fundar uma cultura – normas, hierarquias e pactos – sem evocar a sombra da destruição?

Podemos afirmar que o vínculo humano é tecido entre a necessidade de pertencimento e o impulso de exercer poder, entre a abertura ao outro e a defesa contra a ameaça que ele representa. Reconhecer essa tensão é recusar tanto o idealismo moralizante quanto o cinismo niilista – é abrir espaço para pensar a cultura a partir de suas fissuras constitutivas.

A crueldade não serve nem ao amor, nem à morte. Se sua raiz está nessa potência primeira do apoderamento, talvez seja o caso de nos perguntarmos: qual é a verdadeira força que funda o psiquismo? A resposta, por vezes incômoda, é que o psiquismo nasce da necessidade de preservar-se frente à ameaça, condição que não se realiza sem uma dose inevitável de crueldade.

Antonio Trevisan é psicólogo e psicanalista. Doutor em psicologia pela Université Côte d’Azur (França) e em psicologia clínica e cultura pela UnB. Atua na clínica psicanalítica e coordena o grupo de pesquisa em psicanálise Poiésis

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