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quarta-feira, setembro 3, 2025

Agosto, o mês dos pastores – Revista Cult

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Três indivíduos, uma pergunta e tantos questionamentos: o que uma pessoa que sobe numa antena e tira a própria vida, outra que recomenda meninas “morenas, porque branquinhas dão mais trabalho”, e um terceiro individuo que circula de calcinha e peruca enquanto dissemina na internet advertências contra “imoralidades sexuais” têm em comum? O enigma não é de ordem moral; é um fato simples e incômodo: todos são homens e pastores evangélicos. Aqui, gênero e ofício se encontram numa palavra que vem do latim, pastor, e significa “aquele que apascenta”. O problema é que, em agosto de 2025, vimos pouco cuidado com o rebanho e muitos sintomas de um arranjo religioso que forma homens para administrar (corpos, afetos, desejos) e, ao fazê-lo, os destrói por dentro. Agosto foi o “mês dos pastores” e não existe amém no fim da frase.

O usuário de redes sociais desavisado poderia compreender estas viralizações como casos isolados, bizarros e desconexos, mas permita-me ilustrar estas três notícias como três janelas de um mesmo edifício. Num andar, a morte evitável seguida de frieza institucional. O chefe do pastor que tirou a própria vida era Edir Macedo. O bispo se manifestou como um trator que passa por cima de toda e qualquer erva daninha que oferece risco de contaminar a safra de sua instituição. Há também a falha radical e apatia coletiva de uma comunidade de fiéis que não reconhece o sofrimento psíquico do seu líder porque o mito da invulnerabilidade pastoral exige silêncio. No segundo caso, vemos a banalidade do preconceito ornamentada de conselho “prático. O racismo com roupas de ir a igreja atuou como conselheirismo de púlpito que revela um habitus de hierarquização dos corpos. Por fim, no térreo, a cena tragicômica do moralista em contramão do próprio discurso: a vida dupla que emerge quando o desejo é administrado apenas por proibições. Em comum, o edifício construido com padrões de violência reproduzidos e internalizados. A estrutura, condenada desde a sua fundação é evidente: o algoz, cedo ou tarde, também será vítima do mecanismo que o treina a oprimir.

Michel Foucault chamou de poder pastoral a forma de governo das almas que pede transparência total, confissão contínua, obediência amorosa. Em versões contemporâneas do pentecostalismo e do neopentecostalismo, esse poder se soma ao capital religioso (Bourdieu) e ao empreendedorismo moral: o pastor torna-se gestor de méritos, mediador de bênçãos, curador de culpas. O púlpito se expande: rompe as paredes do templo, migra para a live; o rebanho vira audiência e as cabeças aumentam, aumentando assim a fortuna do dono da fazenda. O otimismo cruel de Lauren Berlant alerta sobre o apego a promessas que, ao nos sustentarem, também nos ferem. O “otimismo” de uma santidade performática e produtiva que diz: “derrote o pecado, prospere, há esperança!”, mas que fere os próprios agentes do discurso. No caso do suicídio, a teologia que administra vidas como se tudo fosse questão de força de vontade fracassa diante do real. Na teologia, a teóloga Dorothee Sölle falava do dever cristão de desprivatizar o sofrimento. A ideia consiste em recusar a afirmação de que a dor seja apenas assunto individual ou castigo pessoal. Para ela, o sofrimento deve ser politizado e colocado em esfera pública, clamor ético e responsabilidade coletiva diante da injustiça.

No episódio do “casamento mais barato”, onde o pastor sugere que morenas geram mais economia aos homens do que as brancas, a cena é didática. A fala racista-sexista não é um deslize pessoal; é um roteiro de socialização. A teologia do mérito economiza as relações: tudo vira custo/benefício espiritual e material as custas do pensamento prevalente racista que categoriza e hierarquiza corpos e gêneros. Some-se a isso a longa história brasileira de racialização da beleza e do valor conjugal e temos o resultado: uma ética doméstica que desumaniza mulheres desde a base sob a capa da “prudência”. Já a cena do pastor de calcinha e peruca exige menos escárnio e mais leitura. Eve Sedgwick chamou de epistemologia do armário o regime social que organiza desejos por meio do segredo e da vergonha. No lugar onde o desejo é apenas policiado, ele aprende a sobreviver como farsa. Com estas reflexões, temos um surpreendente resutado previsível: vidas duplas, ressentimento, proibições cada vez mais estridentes e, no fim, explosões públicas. Diane Langberg, que trabalha há décadas com traumas em contextos religiosos, mostra como sistemas que sacralizam autoridade e não criam contrapesos institucionais produzem segredos, cumplicidades e abuso. O flagrante é só a ponta.

Há ainda um quarto eixo costurando agosto: a plataforma. Bernard Stiegler definiu as tecnologias como pharmakon (remédio e veneno). O ecossistema digital é o púlpito infinito que promete alcance e “avivamento” mas, simultaneamente, proletariza a atenção, terceiriza a intimidade e captura afetos por métricas. Hartmut Rosa sugeriu que só nos reumanizamos quando experimentamos ressonância que consiste em uma relação não instrumental com o mundo. O problema é que na liturgia algorítmica que recompensa ruído, não há ressonância. Nesse ambiente, o pastor é tentado a ser comentarista, influencer, gerente de crises, síndico moral do feed. A sobrecarga vira identidade e a identidade, quebra. “Mas eles não são vítimas?”, alguém questionará. É urgente que antes de absolvições busquemos genealogia. Não se pode tratar como inocentes um bispo que despreza o sofrimento psiquico de outro, um pregador que naturaliza hierarquias raciais ou um pastor que usa o púlpito para ferir aquilo que ele deseja em segredo. A crítica, aqui, é dupla: pessoas devem ser responsabilizadas por seus atos e sistemas devem ser desativados quando fabricam o pior de nós (sobretudo quando o fazem em nome de Deus).

O que agosto de 2025 escancarou não pede fórmulas prontas. Não se trata de recomendar ajustes pontuais nem de propor medidas corretivas de manual. O que vimos é um sintoma de um corpo muito maior: igrejas que já não podem ser tratadas como guetos ou bolhas porque atravessam a política, a economia, a cultura e a subjetividade nacional. Não se trata apenas de três pastores em crise, mas de um sistema que forma, cobra, expõe e consome lideranças até que explodam — seja em um colapso silencioso, em uma fala que naturaliza hierarquias raciais, ou em segredos viralizados que irrompem grotescamente na madrugada. Esse ciclo não é acidente, é resultado de um projeto. A tentação é responder com escárnio ou com piedade, mas nenhuma das duas atitudes atinge o centro da questão. O desafio é mais severo: compreender que o mesmo arranjo que promete cura, prosperidade e sentido é também o que gera culpas intragáveis, afetos não nomeados, violências que voltam em ricochete. É nesse sentido que a crítica teológica e social deve ter um espaço a mesa nas questões sociais brasileiras, pois precisa ser feita com pluralidade e radicalidade: não para obter protagonismo, absolver culpados ou demonizar figuras isoladas, mas para expor a engrenagem que fabrica algozes e vítimas na mesma fôrma.

Se há uma esperança, e não no tom fácil da autoajuda religiosa, ela está em reconhecer que o problema não é periférico, mas que toca em grande medida, a periferia social brasileira. A questão é central, estrutural e está crescendo em doses cavalares no Brasil. Supor que se trata apenas de desvios individuais é manter a roda girando. Encarar o quadro com seriedade é admitir que “apacentar” deixou de ser o cuidar para se tornar, administrar. Até que essa lógica seja desmontada de janeiro a janeiro, teremos doze agostos por ano e veremos repetida a mesma tragédia com novos rostos.

Alan Gentil é teólogo, escritor, mestre em Religião, Direitos Humanos e Sociedade e doutorando em Teologia na Faculdade Católica de Palermo. Mora na Sicília, Itália, onde lidera  quatro comunidades ecumênicas.



[Fonte Original]

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