Em meu artigo publicado na Cult sobre Carlinhos Maia — que chamei de “seu império do grotesco” — escrevi:
“A viralização digital não é uma abertura do espaço público, mas sua simulação. O que se vê é uma sujeição disfarçada de autonomia: o indivíduo acredita ser livre ao performar a própria intimidade nas redes, mas está, de fato, obedecendo a um sistema de valores e visibilidade ditado pelas plataformas, pelos algoritmos e pelo apetite por conteúdo do público consumidor. É a “produção de si como mercadoria” elevada ao paroxismo. E, ao contrário da promessa de que “todos podem ser famosos”, o que ocorre é a reiteração de exceções: o sucesso de um Carlinhos Maia não é reprodutível em massa — mas serve para alimentar o mito de que seria.”ente: é a engrenagem central da narrativa
Naquele texto, procurei mostrar como a espetacularização da intimidade, somada à lógica de monetização das redes sociais, construiu um novo tipo de celebridade: não apenas famosa por ser famosa, mas capaz de converter a própria vida (e a vida alheia) em mercadoria. De lá para cá, passei a refletir sobre outro aspecto dessa mesma engrenagem complexa: a apropriação e a mercantilização da estética queer, antes circunscrita a guetos e festas clandestinas, agora incorporada e triturada pelo capitalismo de plataforma.
Historicamente, a cultura queer nasceu como subcultura marginalizada, marcada pela perseguição e pela necessidade de códigos próprios de linguagem e comportamento para sobreviver. Sua estética — do “camp” ao “voguing” — nunca foi mero adorno: era forma de resistência, paródia da norma e afirmação de dignidade diante da exclusão. Em 1964, Susan Sontag, em seu célebre Notes on “Camp”, descreveu essa sensibilidade como um amor pela teatralidade, pelo exagero e pela ironia — um código que a maioria heteronormativa nem sempre entendia, mas que para nós era cheio de significado.
Com a indústria cultural e, mais recentemente, com o capitalismo de plataforma, esse código deixou de ser segredo para ser produto. A lógica que a MTV já ensaiava no fim do século XX — exportar a gramática pop dos Estados Unidos para o mundo — foi radicalizada pelas redes sociais. Hoje, algoritmos globais, operando sob o que Byung-Chul Han chama de “psicopolítica” e “sociedade do cansaço”, alimentam um fluxo ininterrupto de imagens, sons e narrativas que exploram nossos afetos mais intensos: medo, inveja, ódio, narcisismo e ganância. Nessa engrenagem, a estética queer tornou-se um pacote pronto para consumo: brilho, corpos coreografados, discursos de autoafirmação — muitas vezes deslocados de qualquer consciência de classe ou compromisso comunitário.
Não que a cultura pop, em figuras como Beyoncé ou Lady Gaga, não tenha produzido momentos genuinamente emancipatórios. Há potência em ver mulheres negras e artistas queer reescrevendo imaginários de poder e desejo. Mas quando esse gesto é convertido em fórmula replicável para todas as plataformas, perde-se a densidade política e sobra a superfície. O “camp” deixa de ser ironia e vira padrão; a performance deixa de ser insurgência e vira filtro do TikTok.
Esse deslocamento produz contradições perversas. No Brasil, um exemplo recente é o do influenciador Hytalo, que transforma crianças em performers dessa estética — com figurinos, coreografias e gestos carregados de sexualidade — para realities e clipes no Instagram e no TikTok. O caso ganhou repercussão nacional quando furou as bolhas digitais graças a um youtuber hetero e cisnormativo chamado Felca, embora muitos outros influenciadores LGBTQIA+ já estivessem denunciando Hytalo há tempos. Esse episódio é sintomático: revela o quanto as vozes LGBTs — mesmo quando falam de temas que lhes dizem respeito diretamente — continuam sendo pouco levadas a sério pelo público mais amplo e pela própria dinâmica de visibilidade nas plataformas.
Não se trata aqui de moralismo nem de reprimir a expressividade infantil, mas de apontar a perversão de um sistema que hiper-sexualiza meninas (e, em menor medida, meninos) como estratégia de engajamento e monetização. A gramática corporal e linguística antes confinada a clubes gays e palcos de drag queens passa a ser reproduzida por crianças que sequer compreendem seus códigos originais.
Camille Paglia, em Personas Sexuais, nos lembra que a arte e a cultura sempre incorporaram tensões eróticas e ambiguidades sexuais — e que isso é parte da vitalidade criativa humana. Mas quando a sexualidade é mediada por algoritmos, ela deixa de ser tensão para ser cálculo: o tempo de tela de uma criança maquiada ou de um adolescente performando sensualidade é medido, vendido e reinvestido em mais conteúdo do mesmo tipo. A estética que nasceu como insurgência queer contra a moralidade dominante se vê, assim, a serviço de uma moralidade de mercado que mede valor em cliques e shares.
O paradoxo é brutal: à medida que a estética queer ganha hegemonia cultural — a ponto de crianças e adolescentes reproduzirem suas expressões com naturalidade —, a violência contra pessoas LGBTQIA+ cresce, sobretudo nos Estados Unidos e no Brasil. Como escrevi no artigo sobre Carlinhos Maia:
“Hoje, enquanto multidões se exaurem para produzir conteúdo nas redes, sonhando com a visibilidade de um influenciador bem-sucedido, os verdadeiros imperadores do mundo — as big techs, os fundos de investimento, os donos das plataformas — operam desde o anonimato. Promovem a ficção da fama democrática enquanto bloqueiam qualquer real redistribuição da riqueza, da dignidade ou da palavra. Impedem o aprofundamento da democracia, não por censura explícita, mas por distração generalizada”. brilhe
Visibilidade não se traduz automaticamente em emancipação; às vezes, o efeito é o oposto, alimentando reações violentas justamente porque a mudança parece mais profunda do que realmente é.
A saída não é o retorno aos armários, nem o silenciamento de nossa cultura. É reconhecer as armadilhas do capitalismo de plataforma e resistir à homogeneização global que ele impõe. Isso exige responsabilidade social na produção e consumo de cultura — especialmente quando envolve crianças — e um esforço deliberado de criar e preservar espaços onde a estética queer possa continuar sendo linguagem de liberdade, e não apenas mercadoria. Como no “camp” original descrito por Sontag, a potência está em rir, brilhar e exagerar — mas com a consciência de que cada gesto carrega história e política, e não apenas potencial de viralização.
Jean Wyllys é jornalista, escritor e ensaísta, autor, entre outros livros de Falsolatria (Editora Nós e Edições Sesc São Paulo, 2024) e O anonimato dos afetos escondidos (Tusquest, 2025)