Nos últimos anos, a linguagem da política tem migrado — silenciosa e radicalmente — para o campo da dramaturgia digital. Vídeos curtos, com estética emocional, enredo condensado e personagens bem delineados, vêm substituindo discursos, notas oficiais e entrevistas como formas de persuasão pública. O que antes era um recurso auxiliar nas campanhas tornou-se o principal veículo simbólico de disputa de sentidos na arena digital.
Plataformas como TikTok, Instagram Reels e aplicativos dedicados à ficção curta, como ReelShort, inauguraram um novo modo de narrar. Nele, não há espaço para longas explicações nem argumentações refinadas: o que conta é o impacto imediato, a narrativa clara, o personagem forte. Não se trata apenas de comunicação, mas de performance com estrutura dramatúrgica. E quem compreende isso, leva vantagem.
Alguns políticos da nova geração já assimilaram essa lógica. O deputado federal Nikolas Ferreira, por exemplo, constrói sua persona digital como a de um protagonista em luta: jovem, cristão, perseguido por um sistema supostamente hostil. Cada vídeo seu é um episódio fechado — com início, meio e fim — que o posiciona como herói moral diante de um antagonista simbólico. Pablo Marçal, por sua vez, opera na chave da autoajuda messiânica: é o guia espiritual do empreendedor perdido, o homem que “entrega palavra” com luz e intensidade. Ambos, cada um a seu modo, encenam convicção, dramatizam a mensagem, performam uma trajetória.
À esquerda, figuras como Tabata Amaral e Érika Hilton também ocupam esse espaço. Tabata aposta numa linguagem racional, jovem e propositiva. Erika adota o enfrentamento simbólico como centro de sua atuação, com vídeos que denunciam, provocam e mobilizam. Mas o uso da dramaturgia ainda é mais tático do que estrutural: o vídeo serve à causa, mas não necessariamente constrói uma série narrativa com continuidade simbólica.
O que diferencia os mais eficazes não é apenas o domínio da técnica, mas a compreensão de que o vídeo curto funciona como narrativa em série, com personagem, conflito, tensão e desfecho. Essa estrutura, herdada do melodrama e das ficções populares, foi transposta com força para o discurso político — e poucos perceberam sua potência.
João Campos tem explorado com eficácia as possibilidades simbólicas do vídeo curto, combinando leveza cotidiana, bastidores calculados e uma estética que humaniza o gestor. Seus vídeos constroem uma narrativa de juventude e proximidade afetiva, com uma figura política afinada aos tempos digitais.
Outros nomes, como Eduardo Leite, vêm ampliando sua presença nas redes, com vídeos de bastidores, agendas e traços de espontaneidade. Mas ainda atuam no plano institucional e informativo, sem o grau de construção simbólica e dramatúrgica que fideliza públicos e forma imaginários.
Esse novo ecossistema, no entanto, não está isento de riscos. A tentação de transformar a política em puro espetáculo — com protagonistas fabricados, vilões caricatos e clímax artificiais — é grande. A linguagem emocional e fragmentada do vídeo curto favorece simplificações, maniqueísmos e versões distorcidas da realidade. A fronteira entre engajamento legítimo e manipulação é tênue — e a sedução do populismo teatral, real.
A ética política, nesse contexto, não se mede apenas pelo conteúdo, mas pelo uso responsável da linguagem. Enganar, omitir ou explorar afetos em nome de likes é mais fácil do que nunca — e mais perigoso também. A arte de comunicar, quando perverte o conteúdo em função da forma, pode converter a política em mercadoria simbólica — vendida ao preço da verdade.
Isso não significa rejeitar a linguagem do tempo. Significa disputá-la com inteligência, propósito e integridade. É possível narrar com emoção, sem mentir. É possível construir personagens políticos com profundidade simbólica sem recorrer à caricatura. O desafio é formar lideranças que compreendam a linguagem do agora sem trair os princípios que sustentam a política como prática pública.
O vídeo curto é, hoje, uma das formas mais poderosas de mediação simbólica. Ele pode ser usado para empobrecer o debate público — ou para traduzi-lo com força poética e pedagógica. Pode capturar corações com verdades simples — ou enganar consciências com slogans falsos. A escolha é sempre de quem produz — e, cada vez mais, de quem consome.
A estética do vídeo curto não é apenas um novo formato. É uma forma de poder simbólico. E como toda linguagem de massa, pode ser instrumento de libertação ou de manipulação. A diferença estará, sempre, na intenção, na consciência ética e na responsabilidade política de quem a utiliza.
Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação e vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro.