Visando discutir de maneira mais porosa a etiqueta esquerdomacho do que em geral ocorre nas redes, o Projeto Babel de podcast (apoio: Cátedra Edward Saïd, FAPESP e Unifesp) entrevistou cinco convidadas/os, dentre os quais a psicanalista Tania Rivera, que sugeriu a leitura de um texto de sua autoria para respaldar a conversa: “Para dissecar o falo: fetiche, violência e sedução” (Revista Lacuna, 2023). Trago um breve recorte do diálogo e algumas reflexões que pude fazer a partir dele.
Logo no início da conversa, Tania ponderou que, embora a denúncia possa ser importante em alguns casos mais extremos, a etiqueta esquerdomacho não pode se assentar sobre a acusação e se restringir às dinâmicas polarizadas das redes sociais. Construir vias coletivas exige estremecer categorias encerradas e formas de pensamento enrijecidas. Se tomada como uma espécie de provocação irreverente, porém, a categoria esquerdomacho alcança uma série de pontos específicos e importantes sobre problemas contemporâneos.
Ao longo do bate-papo, abordamos certo esgotamento do discurso e do fazer política de uma esquerda mais tradicional. Tania Rivera enfatiza como a questão de gênero atravessa de maneira determinante e inexorável posições de esquerda e de direita. Seria obsoleta, por conseguinte, a ideia oriunda de uma esquerda tradicional de que a luta de classes se destacaria da luta pela igualdade de gênero.
Na própria Revolução Russa, lembra ela, havia uma preocupação central em dissolver posições patriarcais imanentes às explorações de classe. Sublinha o fato de que hoje a extrema-direita se articulou e se fortaleceu tanto no Brasil, quanto no globo, apoiada na pauta de gênero. Por tal razão, tópicos sobre gênero seriam incontornáveis à política.
Nesse quadro, diferentes vertentes feministas apresentam reflexões e propostas que não interessam e nem se restringem apenas às mulheres ou às populações queer e dissidentes. Convidam cidadãos/as, cujas pautas são progressistas, a repensar estratégias e outros modos de se fazer política na atualidade. Diante disso, caberia perguntar por que não só a direita, mas curiosamente também a esquerda arma uma ferrenha recusa (Verleugnung) – no sentido psicanalítico do termo – em relação ao que propõem feministas e populações queer e dissidentes.
Para pensar tal fenômeno de recusa, Tania Rivera forja um sagaz termo valise: homenino. A lógica do homenino, tratada por ela com humor, revela o que está em jogo na dinâmica fálica heteropatriarcal, mostrando uma modalidade de interpelação dos homens na nossa sociedade que promove uma espécie de infantilização deles. Com a palavra condensada homenino, ela se aproxima do esquerdomacho a partir de um novo prisma.
O significante homem, ela frisa, não diz respeito a uma essencialização ou a uma naturalização da figura do homem anatomicamente considerado. Trata-se antes de uma posição subjetiva e de um lugar de enunciação. Com maior precisão, argumenta que o termo homenino já indicaria uma categoria que não recai nas dicotomias binárias mais convencionais homem e mulher. Ou seja, homenino resistiria a qualquer tipo de essencialização e, ao mesmo tempo, indicaria uma espécie de traço demarcado discursiva e estruturalmente a ser esmiuçado pelas lentes da psicanálise.
Como representar tal lugar de enunciação de homenino esquerdomacho? Talvez a principal característica seja o fato de ele preservar uma ilusão de neutralidade que o isola. Ou ainda mais precisamente: ele tece críticas como se estivesse fora do mundo. Observa o panorama e profere seu discurso a partir de uma visão de sobrevoo. Supõe suspender-se dos limites de tempo e espaço e pairar sobre as diferentes circunstâncias. Emite suas análises como se elas fossem capazes de captar uma totalidade. O esquerdomacho almeja proferir uma verdade sobre o mundo e sobre o que deveria ser feito para se atingir determinados ideais.
Em suma: é possível notar em publicações ou discursos de alguns intelectuais de uma esquerda mais tradicional um modo recorrente de se colocar como centro dos discursos a partir de uma modalidade de enunciação que se pretende alinhada à verdade, tomada como neutra. Talvez, pondera mais exatamente, nem se trate tanto do problema de se colocar no centro, mas mais ainda de supor-se transparente e desencarnado, abstendo-se das marcas e dos contornos situacionais. Transfigurado nessa espécie de existência fantasmagórica a verdade por ele emitida se veste de um tom irrefutável ou assume um lugar enrijecido de mestre.
Tania Rivera descreve uma modalidade de linguagem em bloco do esquerdomacho. Tal dimensão estética do discurso esquerdomacho apresenta verdades sem hesitação, o que a leva a pensar sobre a importância das incertezas e de um caráter titubeante de linguagem. Construir e pensar com outras/os/es que estão presentes exigiria uma disposição de escuta mais permeável à dúvida, não como sinal de descuido ou de negligência, mas antes como indicativo de abertura e porosidade diante das diferenças.
Pode-se dizer que o campo dos ideais é o principal alvo da dissecação analítica de Tania Rivera. Ideais como os de revolução ou comunismo, por exemplo, próprios ao esquerdomacho, apareceriam como soluções mágicas, que pouco se desdobram das conjecturas e das construções coletivas. Mas como tais ideias são interpretados pela psicanalista?
Segundo ela, seria importante separar a posição do esquerdomacho da do machista de extrema-direita, como redpills e incels. Tal distinção é essencial para as reflexões teóricas e ações políticas. Todavia, seria relevante considerar, ao mesmo tempo, um traço comum a ambos: tanto um, quanto outro apresentam uma espécie de impermeabilidade ao que foge ou rompe com a lógica da fratria. Em tal funcionamento fraterno de homenino opera uma dinâmica de enlace entre pares que se aproxima do que se vê na irmandade da máfia – quem não pertence ou rompe com os irmãos homeninos sofre um certo tipo de retaliação.
Tal lógica está muito bem exposta, como se sabe, em Totem e tabu e em Psicologia das massas e análise do eu, de Freud. Esses textos freudianos, assim como outros, revelam a centralidade do ideal paterno para o advento da Lei e a articulação do laço entre irmãos pela recusa do Outro. Os ideais cumprem a função de amarrar os vínculos fraternos. Romper ou trair o elo entre irmãos pode redundar em violência extrema. Ainda que sua figura encarnada seja sempre cambaleante, o ideal do pai se mantém como fantasma a sustentar a fratria de homeninos. Seguindo esse raciocínio, Tania Rivera conclui que a centralidade do complexo de Édipo na psicanálise condiz com uma posição política dessa esfera de saber que resiste a outras formulações teóricas e práticas, como aquelas oriundas dos feminismos e as das teorias queers.
Contudo, observa Tania Rivera, seria preciso resgatar uma espécie de recalque da psicanálise em relação a um grão de máxima crueldade do pai. Esse aspecto violento, visível sobretudo na figura paterna da horda, é fundamental para as análises de Tania Rivera, que está escrevendo um livro sobre o tema. Depois de tais considerações expostas no podcast, aguardamos a publicação ansiosamente!
Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de “Sublimação e Unheimliche” (Pearson, 2017), “A abstração e o sensível: três ensaios sobre o Moisés de Freud” (E-galáxia, 2020) e organizadora de “Freud e o patriarcado” (Hedra, 2020).