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quinta-feira, setembro 4, 2025

Luto de mãe – Revista Cult

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Há mais ou menos dois anos venho amargando um luto que era para ter sido vivido na infância. Venho também sofrendo um luto novo relacionado ao mesmo tema: maternidade. Explico. Minha mãe morreu quando eu tinha nove anos. Fui mãe de gêmeas aos trinta e oito. Só depois que tive minhas filhas entendi o cenário sombrio. Com a escrita do meu romance Vida doçura, que sairá em março de 2026, pela Companhia das Letras, eu mergulhei sem escafandro no rio Tietê. Debulhei à força, de modo masoquista, sentimentos preciosos e cobertos de espinhos. Tinha que fazê-lo, era o que a história pedia, mas o meu corpo sofria. Não sei nem se deu um bom livro.

Estive muito deprimida no ano passado porque não tinha a proteção suficiente para abordar o tema do meu romance e abordei mesmo assim. A sensação de sufocamento e medo eram constantes. Eu encarava o meu maior monstro depois de passar uma vida escapulindo dele. Ao mesmo tempo eu vivia um luto persistente e diário de não ser a mãe que eu sonhei ser. Até pouco tempo não entendia o conceito da “mãe suficientemente boa” de Winnicott, não sabia que ele apontava para uma mãe que deixa seus filhos se desgarrarem dela aos poucos. Na minha ignorância, achava que era ser uma mãe mais ou menos boa, e me sentia contemplada por isso. Mas a verdade é que eu estava flutuando no movimento contrário, querendo que elas voltassem a ser os bebês graciosos que eram, enquanto de fato elas só admitiam suas personalidades fortes, sentiam dores de crescimento e aumentavam vertiginosamente o tamanho dos pés.

Sonhava em ser uma mãe que brincasse, que passeasse, que arrumasse os brinquedos e o guarda-roupa e que, sobretudo, tivesse a diligência maternal que nunca tive. Ao contrário disso, sou uma mãe deitada ditando ordens e exigindo afetos; o que faço de mais próximo do que eu sonhava é pentear seus cabelos e cantar.

Quando concluí a escrita do meu romance, estava em frangalhos, porque só ali comecei a consumar o luto guardado há 36 anos num cofre enferrujado. O luto é como atravessar uma noite longa e fria que nunca amanhece. Você ri menos, não vê graça no que há graça e se entristece porque suas filhas estão ganhando o mundo.

Eu achava que a palavra mãe voltando a salpicar o meu cotidiano me tornaria mais feliz. Longe disso, me emburaquei na minha falta e vi minha própria história sob uma perspectiva mais sombria. Observando o apego das minhas filhas a mim, como pude suportar? Antes de ser mãe eu tinha uma perspectiva só de filha. A perspectiva de mãe é muito mais dolorosa, geométrica, palpável.

Enquanto sofria o luto da minha mãe e da mãe que eu queria ser me deparei rolando o feed do Instagram com esse depoimento com tradução estranha do Deepseek:

Quando você pensa sobre a perda, quando você perde alguém — essa primeira vez é o evento inicial — e então, se você espera tempo suficiente sem essa pessoa, você a perde repetidamente, por todo o tempo em que você está vivo e ela não está. Isso significa que você precisa se acostumar a enterrar alguém vez após vez, o que, se não for pensado de uma forma generosa, pode ser assustador demais para conviver.

Mas, por outro lado, se você acreditar — como eu acredito — que o luto é apenas uma emoção batendo à porta da memória, pedindo para que você se lembre de algo, então há uma gratidão real nisso. Há uma gratidão verdadeira na recordação. Há uma gratidão real em eu buscar a voz da minha mãe, mesmo quando não consigo recuperá-la, porque mesmo assim estou buscando por ela. Isso me lembra que estou perdendo alguém de novo, de novo e de novo — mas, ao perdê-los, eu posso voltar ao lugar onde eles viveram, onde posso recordá-los. E isso é motivo de celebração.

Achei bonito, mas não pude discordar mais. Não quero essa visita diária na minha vida. Não quero essa celebração.

Recentemente estive em Brasília, mais perto dos ossos da minha mãe. Então tomei uma decisão radical. Precisava visitar seu túmulo e ter uma conversa séria com ela. Fui de vestido rosa e cabelos soltos, o dia estava iluminado e seco. Encontrei o túmulo pelas fotos e lá estava ela, junto aos meus avós. Numa imagem linda, em sépia, com seus olhos grandes e claros. Comprei crisântemos gordos e brancos para honrá-la, e me sentei no túmulo empoeirado. Conversei em silêncio, conversei em voz alta, e quando disse: “Mãe, eu te perdoo e me perdoo também”, um redemoinho de vento cinematográfico rodopiou sobre a cena e, de tão forte, derrubou o vaso de flores. Ela havia me respondido. Foi o único vento que atravessara Brasília naquela tarde suspensa. Tenho certeza. Eu merecia, afinal.

Depois de tudo, saí mais leve. Admitindo a mim mesma que minha mãe morrera há trinta e seis anos e que eu estava viva. E, além de viva, era mãe de duas meninas elétricas e doces. Virei as costas para a casa onde a vi pela última vez e comemorei sua resposta com duas cervejas.

(Antes disso apareceu um senhor oferecendo limpar o túmulo e plantar os crisântemos no canteiro. Ficou muito bonito e respeitoso, e minha mãe estava em paz.)

Depois de uns dias, indo em direção ao aeroporto com minhas filhas, de volta a São Paulo, fiquei adivinhando com elas as nuvens esparsas no céu irreal de Brasília, um tatu com raiva, um brócolis, uma bailarina tropeçando. No banco de trás do Uber, agarrei minhas filhas com a força do amor que sinto por elas e por minha mãe. A vida segue na velocidade dos pés de minhas filhas, e eu que lide com isso. Agora com mais leveza, por favor.

Natércia Pontes nasceu em 1980, é cearense e mora em São Paulo. Autora de Copacabana dreams (Cosac Naify, 2012), (Segunda edição, Companhia das letras, 2024), finalista do Prêmio Jabuti, 2013, e de Os tais caquinhos (Companhia das Letras, 2021). É autora de outros contos publicados em edições como Granta (2023) e O dia escuro (Companhia das Letras, 2024).



[Fonte Original]

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