Na preciosa animação Valsa com Bashir (2009), um soldado israelense passa a ser atormentado por pesadelos e pela dúvida de sua real participação no Massacre de Sabra e Chatila, durante a invasão do Líbano por Israel, em 1982. Para desvendar o que foi encoberto pelos quatro cavaleiros da consciência: Culpa – Tempo – Percepção – Linguagem, ele decide procurar ajuda, especialmente em seus companheiros de guerra. Um deles, Ori, que também é psicólogo, explica ao protagonista que apagamentos e recordações são parte de um jogo da memória, que “é dinâmica e tem vida própria”. Para defender sua afirmação, Ori revela um interessante experimento neurocientífico: em uma série de fotos reais da infância de diferentes indivíduos, um retrato num parque é inserido. Essa é uma foto “falsa”, que não fez parte da história de nenhum dos entrevistados. No entanto, ao serem exibidas a cada um, todos “reconheciam” o dia no parque, faziam associações, verbalizavam sentimentos e estavam plenamente seguros de que haviam vivenciado aquele momento.
A plasticidade da memória é uma aliada perfeita da consciência, gerando emoções de bem-estar e de uma infância feliz, ainda que não tivesse sido assim. Culpa, tempo, linguagem e percepção se unem para modelar essa argila mental e emocional extremamente maleável, com o objetivo de nos proteger de uma dor com a qual seria muito difícil viver. Essa ação entre os quatro elementos se torna ainda mais necessária se carregamos dores e vivemos em um mundo incerto que se reinventa a cada dia com um novo desafio.
Roland Barthes em A câmara clara (1984, tradução de Julio Castañón Guimarães) asseverou que a história, assim como a fotografia e tantos outros elementos constituintes de um percurso existencial, inclusive a memória, seja real ou inventada, fornece um “infra-saber”, uma sequência de objetos parciais – chamados pelo autor de biografemas — que produz um gosto pelo “eu”. Esse gosto é formado por uma miríade de biografemas doces que encantam e enfeitam a trajetória humana.
“Eu não consigo entender como algumas pessoas dizem que a infância é a época mais feliz da vida”, se questiona a personagem Ana de Cría Cuervos (1976), de Carlos Saura. A dúvida é pertinente: sua trajetória é o espelho de um período atormentado por fantasmas do franquismo espanhol. Como seus pares poderiam ter boas recordações? Biografemas.
Mas os biografemas não são recursos unicamente usados para adornar um passado de desafios. Essas artimanhas neuropsicológicas podem fazer parte do nosso tempo, ajudando a torná-lo um pouco mais palatável, principalmente se falamos de um 2025 em que tarifaços, iminência de guerras nucleares, problemas econômicos, colapso climático, fome em Gaza e tantos outros monstros vêm tirar nosso sono.
Quando os cuervos (corvos) saem do ninho, é preciso proteger os olhos. Melhor se essa proteção tem o sabor, cheiro e as cores de uma época de relativo conforto afetivo. E, se não houve esse conforto, a argila é modelada em forma de morango, como a vida deveria ser.
A substituição de uma maçã, fruta marcada em nossa memória como a causa do exílio adâmico, da perda do paraíso e da inocência, por um morango, não é casual. Muitos dirão que exageramos na profundidade da análise e que o motivo do sucesso da frutinha enrolada em massa de leite condensado sob uma capa de açúcar simplesmente se deve à época de consumo (é uma das frutas da estação) e também pela ação epidêmica das redes sociais.
No entanto, vamos nos defender com um argumento: as redes sociais são o ninho dos biografemas. As memórias falsas de conforto viram verdade até para quem posta. A imagem é só um recurso que em poucos segundos perde sua essência de linguagem de comunicação, seu sentido de registro e entrega o protagonismo ao que posta.
Agora temos a profusão de moranguinhos, mas 2025 se revela prolífico na expansão do fenômeno do conforto emociona sob vários formatos: labubus, bebês reborn, vídeos de bichinhos, filmes de super-heróis, jogos eletrônicos vintage e séries nostálgicas.
A infantilização do gosto popular é a materialização das imagens-lembrança, as quais funcionam como o amortizador contra impactos fortes, uma espécie de “airbags” quando nossa frágil emocionalidade se vê em sérios riscos.
Sobre este aspecto, Marcus Vinícius Baldo escreveu um box pertinente no livro Cem bilhões de neurônios?, de Roberto Lent (2010). Baldo assevera que a construção de percepções — irmãs gêmeas das ilusões — permitem-nos exercer alguma ação sobre o mundo à nossa volta. Assim, o modo como vemos, ouvimos e sentimos o mundo é resultante da maneira como agimos física, mental e emocionalmente a ele, buscando a adaptação que nos possibilita sobreviver. Em suma, não haveria nada de tão diferente em nossas percepções em relação às ilusões, até mesmo biologicamente elas partiriam de um mesmo mecanismo fisiológico que eventualmente nos leva a decisões ambíguas ou irrefletidas, não raramente empurrados também pelos processos de massificação e identificação coletiva.
Se as ilusões ou biografemas se mostram como ferramentas adequadas para a compreensão dos fenômenos perceptivos reais e das fronteiras entre ambos, como afirma Baldo, talvez, aos poucos, possamos formar um quadro mais detalhado da relevância das febres midiáticas e como (ou se) poderemos entender nossas fragilidades transformadas em memórias de proteção.
Entre ilusões e percepções, vamos saboreando um morango amoroso e nostálgico que não nos fala de um passado, mas nos revela que o presente precisa ser adoçado urgentemente. Nem que seja por apenas um clique.
Dirce Waltrick do Amarante é tradutora e ensaísta. Autora, entre outros, de Metáforas da Tradução (Iluminuras). Professora da Universidade Federal de Santa Catarina.
Fedra Rodríguez é tradutora, neurocientista e ensaísta. Traduziu, entre outros, Raymond Roussel, James Joyce e Juan-Eduardo Cirlot.