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quinta-feira, setembro 4, 2025

Por que retrocedemos à parditude? – Revista Cult

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Quando estive no Rio de Janeiro pela primeira vez, em 2019 — convidado para o lançamento do meu livro Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial — recebi o adjetivo por parte de estudantes negros, sectários e essencialistas, de afrobege. O xingamento ocorreu na UFRJ, mas, ao invés de me abalar — ainda que tenha sentido a violência dessa redução fenotípica — tratei de fagocitar a alcunha.

Estávamos aliás no auge de Pantera Negra — o filme da Marvel — e do Lugar de fala, livro de Djamila Ribeiro. Um momento em que o essencialismo, o exotismo e o apego a uma identidade fechada pareciam estar na moda. Naquele momento, todavia, divisei algo importante: havia no ar um “negro ideal”, ficcionalizado a partir do espetáculo das redes sociais, que excluía a multiplicidade do que compõe a ficção racial no Brasil e organiza o significante negro.

Uma redução, sem dúvida, que ignorava totalmente a luta dos últimos 70 anos do movimento negro e que abocanhava com tesão aquilo que o colonizador tinha preparado como armadilha. Interessante como o livro Fascismo de cor: Uma radiografia do racismo nacional, de Muniz Sodré, capturou essa dinâmica quando deixou claro que “a velha questão da raça biologicamente definida e inscrita numa estrutura econômico-político-jurídica” agora, como eu mesmo observava, “desloca-se para a da identificação institucional da cidadania aceitável”. Afinal, o identitarismo como paradigma de gestão.

Com uma especulação sobre privilégio, mais ou menos contrabandeada do mainstream “teórico” norte-americano, um certo colorismo, mais ou menos construído à base do ressentimento, os adeptos dessa redução, que ganhava os holofotes, jogavam com o pardo: nas estatísticas da violência mortal do Estado ele era cotado, mas na partilha das políticas públicas era visto como concorrente.

Diante desse quadro normalizado por muitas “vozes negras” de destaque — com seus beijos de Paris e “moreninhas de turbante” — cantei a bola: em breve iriamos retroceder o debate racial aos anos 1940. Dito e feito. De repente, de conceito político-social, a noção racial retornou à fantasia dos tons de melanina: a estereotipia fenotípica que embasa a cor e traços como critérios de identidade e pertencimento.

Por contingência, nada surpreendente, quando ainda elaborava uma tentativa de aprofundar o entendimento sobre o fenômeno da parditude, chegou-me mais uma notícia de que a banca de heteroidentificação de acesso às políticas de cotas da Universidade Federal Fluminense (UFF) — que excluiu uma estudante cujos traços são evidentemente pardos — violou o processo.

Jogando água no moinho da exclusão, tal atitude — questionada por diversos meios de comunicação que, não por acaso, decidiram expor fotos da estudante excluída — cinicamente se manteve, e os questionamentos sequer obtiveram uma devolutiva por parte da universidade. Quando dos xingamentos se vai à gestão de exclusão, então, há um momento de verdade fundamental à falsidade das respostas dadas e se tem algo que a filosofia ensina é: melhor do que resolver os problemas, é saber formular as perguntas.

O problema, portanto, é o de que parditude parecer ser um sintoma num momento de corrosão solidária, forte individualização, concorrência universal, personalização midiática e ruína dos direitos sociais. Tudo isso ligado ao condão do identitarismo progressista que alimenta a ilusão de que o Estado precisa lidar com a identidade, como se esta não fosse uma criação, mas uma descoberta. Um corporativismo identitário para lembrar Douglas Alves em Para além da identidade: Da resistência à política: “Por que a parditude é um sintoma velho?”

Para determinar a ordem do sintoma, é preciso levar em consideração a operação da “democracia racial”, hegemônica no Brasil durante todo o período desenvolvimentista. O miscigenado foi lido como um genuíno produto nacional de um desenvolvimento que viria coroar a civilização brasileira. Sob o solo dessa ideologia operava a verdadeira intenção: livrar a sociedade brasileira dos elementos afroindígenas.

A miscigenação foi, portanto, a ideologia marcante sintetizada na obra do conservador Gilberto Freyre, que a via como uma lânguida mistura entre as raças, culminando num paraíso racial. O pardo, como produto genuíno, é assim admitido como uma ponte à civilização: aquele que abandonou certas rudezas ancestrais, mas ainda carece de mestre para guiá-lo ao sol da razão. Um bom servo, afinal.

A pergunta a ser feita é: o pardo existe? Não mais do que o negro? O negro existe? Não mais do que o branco. Então, o que são? O que revelam esses marcadores? Para entendê-los, é preciso, o quanto der, escapar da ficção ideológica que alimenta a realidade empírica e levar em consideração que a finalidade histórica da ideia de raça pressupõe uma necessidade: a redução de toda subjetividade e de toda produção cultural aos aspectos formais e administrativos da organização social moderna.

O que é a obra de Gilberto Freyre senão o mais caro fenômeno intelectual que tenta justificar as ficções que alimentam a noção racial e, a partir delas, organizar a realidade do país? A noção racial, que delimita a diferença — sempre guiada por uma fantasmagoria: fenotípica, epidérmica, cultural, etc. — visa tornar a identidade fechada, organizando uma hierarquização que serve ao modo de produção e reprodução da vida social.

Acendendo a ideologia por detrás da mestiçagem, Abdias Nascimento, no inescapável livro Genocídio do Negro Brasileiro, aponta para a violência imposta por essa noção de “democracia racial” que tinha encontrado na miscigenação seu paraíso. Quando se desnuda as relações promíscuas e violentas ocultadas pelo termo mestiçagem, com seu produto “genuíno”, também se desnuda a violência que cinde pretos e pardos nos termos de um racismo denegado, para pensar com Lélia Gonzalez.

O pardo no jardim da casa grande e o preto na senzala. Ou, nos termos do início do século 20, o mulato servindo à mesa e à cama do senhor, enquanto o preto serve à lavoura. Ambos espancados e estuprados.

Como foi pensado o negro no Brasil?

Tornou‑se evidente que a ideologia da miscigenação interessava apenas àqueles que se apresentavam como o universal da relação: os brancos proprietários. A religião tratada como caso de polícia, a implosão de terreiros e as prisões arbitrárias compõem o enredo surdo de uma desfaçatez que se aliou à ideologia denominada ‘democracia racial’. Sob a máquina de guerra encampada pela racialização da vida social, pretos e pardos eram separados para melhor servir.

Era preciso, portanto, encontrar um termo que dissuadisse esse construto monstruoso que inviabilizou a sensibilidade diante de tamanha violência. A resposta era pensar na negridão e caminhar à negritude. Afirma-se negro era, num só golpe, restituir à memória e reconduzir a perspectiva de resgate da dignidade do racializado, a despeito de seus tons de melanina. Justamente por ser um país no qual a miscigenação aparece como forma de um violento embranquecimento, é que se fez necessário pensar o negro como campo de solidariedade comum aos racializados.

É com esse propósito que o Movimento Negro Unificado (MNU) subirá as escadas do Teatro Municipal no final dos anos 1970. Uma das maiores intelectuais e militantes, Lélia Gonzalez, deixava sempre evidente a abertura que o significante negro imprimia às lutas contra a exploração e a opressão geradas pelo capitalismo. Hoje, no entanto, toma-se o efeito pelas causas: como certa parcela do identitarismo progressista tornou-se relevante — e até hegemônico — esquece-se que não foi o movimento negro, mas o colonizador europeu quem reduziu de maneira drástica a variedade de experiências e diferenças entre os grupos humanos.

Precisamos sempre levar em consideração que há várias ficções que sustentam nossa relação material; a racialização — uma das maiores — se organiza de maneira sociocultural. É justamente por isso que Victor Galdino, em seu precioso livro Imagens da noite: Ensaios sobre raça e racialização, dirá: “todo o debate sobre o colorismo, quando não gira em torno de trivialidades sobre a relatividade da violência, serve apenas para reafirmar a ocultação da raça como meio de produção de diferenças de natureza”.

O racializado é reproduzido como uma figura pré-humana. A formação do ideário colonizador-europeu sobre os racializados parte de uma estrutura imaginária que não se interessa em apresentá-los objetivamente por um motivo: produzir um corpo de exploração, seja pardo, preto, indígena ou amarelo.

Hoje, infelizmente, reina a ideia de que o termo negro elimina a multiplicidade dos grupos e suas múltiplas diferenças. Talvez uma boa problematização dessa ideia seja que a diferença é a única coisa que temos em comum, isso a despeito da racialização. Com a história empoeirada, muitos jovens perdem de vista que a cisão entre grupos subalternizados, orientada pela ideologia da democracia racial, era prática dominante até que o acúmulo crítico e militante de diversos coletivos espalhados pelo Brasil afora chegou à conclusão comum: o negro é a possibilidade de solidariedade, política e resgate da memória.

Como, porém, atualmente, as práticas identitárias da esquerda progressista passaram a tomar a negritude como marca, estabelecendo um nicho orientado como reserva de mercado, passou-se a reimaginar um “negro ideal” desligado das contradições históricas brasileiras. O “retinto” estabilizado pela metafísica das dores e pela hierarquização do sofrimento tornou-se o objeto-alvo contra o pardo que serve tão somente às estatísticas que reforçam a necessidade de “políticas públicas”.

Quem vai negar que isso tenha se tornado hegemônico no insalubre espaço da esquerda? Entretanto, não parece ser uma saída reconstituir – sob imaginário colonial – o pardo como resposta igualmente identitária. O que se faz com isso é, na verdade, reforçar uma dinâmica concorrencial que reapoia um imaginário custoso de destituir.

Mas só conseguiremos sair dessas armadilhas quando levarmos em consideração de maneira profunda que “a raça não existe como fato natural físico, antropológico ou genético. A raça não passa de uma ficção útil, uma construção fantasmática ou uma projeção ideológica”, como postulou Achille Mbembe em Crítica da razão negra. E essa projeção serve a um aparato de reprodução que precisa tornar a diferença explorável, forjar identidades competitivas e condicionadas ao seu modelo.

O nascimento do sujeito racial é inseparável da história do capitalismo, que sempre precisou de subsídios raciais para manter sua exploração contínua do planeta. A cooptação e adaptação do corpo, sua imobilidade, sua identificação em formas de gestão estruturam as lógicas de distribuição da violência e, agora, não poupam mais nenhuma região do mundo, bloqueando qualquer alternativa de florescimento de uma verdadeira humanidade.

Nesse caso, se a parditude é apenas o nome para mais uma violência, também são violentos aqueles que se acham guardas de Wakanda e monopolizadores do que é ser negro. Também é por causa deles que regredimos tanto.

Douglas Barros é psicanalista e doutor em ética e filosofia política pela Unifesp. Professor de história da UFF e docente na pós-graduação em filosofia da Unifai. Autor, entre outros livros, de Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra, 2019) e Hegel e o sentido do político (Lavrapalavra, 2022)

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[Fonte Original]

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