Estamos quebrados. Acordamos como se não tivéssemos dormido. O cansaço perene só não é maior do que a necessidade de continuar correndo. Rolamos a tela com os dedos e, mesmo cientes dos danos que isso nos causa, permanecemos presos a essa pequena escala de gozo. Sem a presença corpórea do outro — seu olhar, seus trejeitos e tudo aquilo que compõe uma partilha comum —, acompanhamos o mundo na tela de nossos aparelhos como num espelho que parece refletir o que somos. Enfeitiçados por esse reflexo, passamos a rejeitar de forma radical tudo aquilo que nos nega.
Se o nosso processo de maturidade é muitas vezes sedimentado pelo que nos nega, viver em um mundo narcisicamente orientado por algoritmos nos torna reativos à diferença. A hierarquização das probabilidades de consumo via algoritmos — que organizam o mercado em rede — também nos objetifica ao capturar nossa identificação, reduzindo-nos a usuários submetidos a um sistema regido por um fator de incerteza calculado a partir dos nossos cliques. Ao olhar para a tela, ela te olha de volta.
O mais incrível nesse processo de captura de nossa intersubjetividade reside na necessidade do nosso engajamento como dado fundamental ao sucesso das operações algoritmizadas que, com as plataformização do trabalho e dos gostos, passam a orientar esse admirável novo mundo do comércio. Nesse engajamento 24/7, cujo enlace do nosso olhar é decisivo, há pouquíssimo espaço para o contraditório e a negação — e não apenas isso: tudo vem acompanhado pelas transformações operadas na vida social, em que a concorrência se tornou um fato universal.
Sabemos hoje que o mundo do trabalho foi totalmente transformado no sentido da precarização. Passamos de uma época em que o trabalho era definidor — visto como um destino pessoal, cuja temporalidade se vinculava à vida do sujeito — para outra, em que o trabalho é temporário, especializado e ultrafragmentado. Tudo isso reunido sob um único mantra: flexibilidade.
Na era da flexibilização da vida social, há uma exigência constante de adaptação ao contexto. A impermanência das relações reduziu drasticamente a ideia de solidariedade. Com a interconexão em rede, paradoxalmente, já não existem obstáculos físicos capazes de nos separar — tampouco relações presenciais dispostas a nos unir. A mediação social é feita pela virtualidade da internet, que não raramente desengaja o encontro presencial.
E, assim como já pensava Paul Virilio, nossas relações passaram a ser inscritas em uma temporalidade efêmera e fugidia, marcada pela difusão instantânea de nossas atividades diárias por meio das redes sociais. As conversas — com seus interditos, pausas, negações e zonas de indeterminação — tornaram-se raras, suplantadas por uma comunicação rápida e clara, voltada à reprodução de si mesmo como mercadoria.
Tudo isso já havia sido previsto por alguns críticos, entre os quais destaco Guy Debord, que, ainda na década de 1960, notou que as relações sociais passariam por transformações profundas com a mundialização da sociedade do espetáculo. Nela, a realidade se apresenta como um mundo à parte, um objeto de mera contemplação. A entrega massiva de imagens, a aceleração da informação e uma sociedade hiperconectada — marcada pela competitividade — nos tornariam insensíveis aos fatos.
Debord já havia demonstrando o quanto as garras do espetáculo são profundas, se enraízam na estrutura da própria sociedade de classes e organizam a nossa relação intersubjetiva. Hoje, com a popularização da internet, a contemplação excessiva das imagens, que nos torna passivos enquanto usuários, nos retira também a capacidade de refletir nos acontecimentos. Se sucedem tantos eventos catastróficos e risíveis, num curto espaço de tempo, que nos sentimos impotentes diante deles.
E, com efeito, também os laços intersubjetivos passam a ser produzidos a partir da máquina com tudo o que dela advém: velocidade, clareza e satisfação. O problema é que nossa vida não precisa ser veloz, clara ou estar sempre orientada à satisfação. Aliás, como dizia Badiou, a maior vitória ideológica do neoliberalismo foi ter reduzido a ideia de felicidade à noção de satisfação — ou melhor, ter consolidado a crença de que estar insatisfeito é sinônimo de estar infeliz. Nada é mais enganoso hoje do que isso.
Seja como for o excesso de informação se tornou fundamental para desestimular nossa observação. A velocidade e a clareza da comunicação publicitária desestruturam nossa capacidade contemplativa sequestrada pelos estímulos visuais cada vez mais comprimidos em vídeos curtíssimos. E, assim, a captura do olhar pelos dispositivos mudou de maneira dramática nossa vivência temporal impactando nossa relação cotidiana com o outro.
Nos tornamos especialistas em tudo, mas sem estabilidade profissional; meros passantes nos espaços que antes serviam aos encontros, sem partilha com os outros. O laço de solidariedade, antes organizado pela experiência da partilha do ambiente social, foi substituído pelos algoritmos, que organizam nossos contatos nas redes sociais a partir das identificações.
E, assim, numa sociedade veloz e hiperconectada, as pessoas veem-se obrigadas a desenvolver identidades fragmentadas como resposta à quebra de laços corroídos pela dinâmica competitiva de um mundo do trabalho em crise perpétua. Criamos, com nossas contas, um semblante digital que dá acesso preferencialmente ao que gostamos. Passamos a interagir com aqueles que se parecem conosco, a partir de identificações, e com isso resistimos àquilo que nos é diferente.
O mais impressionante é a constatação de que nosso mundo — como já dizia Lacan — é estruturado pela linguagem, o que faz do inconsciente algo também estruturado por ela. Habitamos um espaço de virtualidade organizado pela troca simbólica que tecemos: é a virtualidade das nossas relações que as sustenta. Assim, a virtualidade das redes — e agora da inteligência artificial — se encontra com nossa própria virtualidade e produz laços sustentados pela fantasia da identidade imaginária.
No Brasil, segundo dados reunidos pelas empresas We Are Social e Meltwater, havia 187,9 milhões de internautas em 2024 — ou seja, 86,6% da população total do país. O tempo médio de conexão de cada brasileiro é de 9 horas e 13 minutos por dia. Os smartphones são os principais dispositivos utilizados (57,6%) e as redes sociais, os ambientes mais acessados (98,9%). Com isso, é possível concluir que a internet tem presença predominante na vida social do país, sobretudo, as assim chamada redes socias.
E, portanto, diante de uma realidade virtualizada e organizada por algoritmos que transformam o mundo em aparência e representação, a organização dos conteúdos que consumimos carrega a marca de nossas identificações — e é, em grande parte, aceita passivamente. O problema, nesse império narcísico, é que a negação e a diferença tornam-se questões difíceis de serem atravessadas.
Isso porque um algoritmo parte de instruções simples e exatas para identificar e quantificar o comportamento dos usuários da internet. Como modelo funcional matemático, baseado em estatísticas por meio da coleta de dados, ele se justifica pelos resultados e pela eficiência de suas metas. A partir de regras básicas, vai se complexificando conforme a necessidade de refinamento para lidar com situações adversas. O objetivo final do algoritmo é a eficiência na entrega de um produto preparado ao consumidor a partir de sua demanda, o que reforça seu domínio sobre a relação com o usuário na consolidação de sua identidade digital.
Sob regras formais e positivas, como as dos algoritmos, perdem-se o contraditório e as zonas de sombra que enriquecem as trocas simbólicas humanas. Em uma sociedade da hiperconcorrência, na qual todos somos reduzidos à imagem que vendemos, já não basta ter ou ser — é preciso parecer ter e parecer ser. As imagens que circulam no mundo da internet tornam-se motivações eficientes, traduzindo um comportamento apaziguado e hipnótico, no qual o marcador da identificação de grupo é fundamental.
Nessa seara em que a identidade imaginária organiza-se pelo algoritmo, perde-se o cuidado com o outro, pois o outro é apenas um semblante — um self digital organizado como perfil. Pode-se ser livremente escroto, com o agravante de que a escrotidão faz enorme sucesso e atrai mais seguidores ao perfil. A identidade imaginária reina soberana, tornando absolutamente tudo, inclusive a crítica, um nicho de mercado.
Assim, as redes sociais tornaram-se um ambiente ao mesmo tempo nocivo e produtor de pseudo-laços, marcados por um reconhecimento efêmero e superficial. Nelas, nos autorizamos à escrotidão: julgamos sem o peso do corpo, do olhar, da respiração. O outro é apenas um avatar — descartável, bloqueável, cancelável — sobretudo se não pertence ao nosso grupo de identificação.
Questões políticas tornaram-se questões privadas, de cunho pessoal e moralizante. Racismo, machismo e homofobia, muitas vezes reduzidos à ideia de mau-caratismo, abrem caminho para punições organizadas pelo gozo de poder decidir, em meio ao oceano de impotência, pelo desaparecimento simbólico de alguém — legitimado por centenas ou milhares de likes. O rito catártico se mistura à sensação de pertencimento imaginário, chancelado por comentários sardônicos e destrutivos.
Nos tornamos todos inquisidores. Esquerda e direita seguem, aqui, o mesmo canto da sereia algorítmica. O excedente desse processo é a construção de uma pós-verdade orientada por grupos de afinidade; a crescente racialização legitimada por comunidades virtuais; e um terreno no qual o afeto mais mobilizado é o medo da diferença — o que abre caminho para a ascensão da extrema-direita.
No fim, tornamo-nos nossos próprios carrascos.
Douglas Barros é psicanalista e doutor em ética e filosofia política pela Unifesp. Professor de história da UFF e docente na pós-graduação em filosofia da Unifai. Autor, entre outros livros, de Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra, 2019) e Hegel e o sentido do político (Lavrapalavra, 2022)