Em uma fábula sobre a extinção de uma espécie de papagaios, o escritor estadunidense Ted Chiang escreve: “A extinção da minha espécie não significa apenas a perda de um grupo. É também o desaparecimento da nossa linguagem, dos nossos rituais, das nossas tradições. É o silenciamento da nossa voz.” Para o escritor de ficção científica, é a linguagem que nos garante lembrar o que significa estarmos vivos. No entanto, “o capitalismo não está interessado nisso, daí a importância de lembrar o valor da linguagem,” ele diz, em entrevista à Cult.
Chiang vem servindo à mídia como porta-voz da causa anti-IA. Para ele, modelos de inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, sequer são capazes de usar linguagem. Em um artigo publicado em agosto de 2024 na revista New Yorker, Chiang defende que a linguagem, por definição, é um sistema que requer a intenção de comunicar. “O ChatGPT não sente nem deseja nada. Essa falta de intenção é o motivo pelo qual ele não está realmente usando linguagem”, escreve.
Ele compara a ferramenta aos videogames: “Muitos gostam de conversar com personagens de videogame. Mas, ao jogar, você não está conversando com ninguém. O ChatGPT é mais sofisticado e cria uma ilusão melhor. Mas eu ainda sustentaria que você não está interagindo com outra pessoa – então, isso não se qualifica como linguagem.”
Em um evento organizado pela agência Pina, com apoio da XP Educação, no restaurante Casa Manioca, em São Paulo, na noite da última terça-feira (6), Chiang defendeu que “a IA generativa pode ser vista como uma forma de diluição: ela cria textos aguados”. Para ele, “se seu objetivo é comunicar algo de valor, diluir não vai ajudar”. O autor estende a afirmação até mesmo para quem pede aos chatbots que escrevam seus e-mails: qualquer texto que mereça sua atenção como leitor é fruto de um esforço por parte de quem escreveu; portanto, por mais que a atenção dedicada ao ler um e-mail seja diferente daquela dedicada a um texto literário, essa atenção só é justificada se o autor realmente refletiu sobre o que estava escrevendo.
O autor define arte como “uma forma concentrada de intenção – é isso que a torna digna de ser apreciada”. Enquanto textos gerados por ferramentas de IA levam segundos para serem fabricados, Chiang rememora os anos dedicados a cada história que já publicou – afinal, ao longo de 30 anos de carreira, lançou apenas duas coleções de contos, História da sua vida e outros contos e Expiração, ambos publicados no Brasil pela editora Intrínseca. “Seu tempo e sua atenção são valiosos o suficiente para que você só as gaste em coisas que alguém passou muitas horas fazendo”, defende. “A IA generativa tenta virar o jogo, mas nosso tempo ainda tem mais valor que isso.”
Ao observar como a relação entre sociedade e tecnologia digital vem se aproximando cada vez mais do retrato pintado pela ficção científica distópica, Chiang arrisca uma reflexão sistêmica, que leva em conta o contexto capitalista em que essas tecnologias são produzidas. “É fácil confundir tecnologia com capitalismo, mas é preciso distingui-los. Acredito que seja mais preciso dizer que a relação das pessoas com o capitalismo se tornou mais distópica nas últimas décadas”, diz à reportagem.
Ele explica que o capitalismo frequentemente tenta se identificar com o progresso, apropriando-se do discurso sobre as tecnologias. “Toda conversa sobre tecnologia, portanto, acaba sendo dominada pelos interesses do capitalismo.” Por isso, “quando observamos como a vida piorou nos últimos 20 anos, pode parecer que a culpa é da tecnologia, mas eu diria que é o capitalismo o responsável por esse declínio”, conclui.
Suas críticas ao capitalismo, no entanto, ficaram de fora da conversa que a CEO e fundadora da agência Pina, Jennifer Queen, promoveu no evento na Casa Manioca. Os cerca de 80 interlocutores, sobretudo jornalistas, influenciadores e convidados, além de espectadores pagantes – uma pequena cota de ingressos foi vendida por R$890 – deixaram de lado o ofício do escritor, vencedor de diversos prêmios Hugo e Nebula, cujo estilo é comparado a nomes como Jorge Luis Borges e Philip K. Dick, para tirar dúvidas sobre a IA, às quais Chiang respondeu com incerteza.
A tensão entre mercado e arte é lembrada pelo autor como um fenômeno que dura séculos. Para ele, a preocupação contemporânea em relação à invasão dos algoritmos e modelos de IA no mundo da arte pode significar apenas mais uma manifestação desse conflito contínuo, “entre coisas que são quantificáveis e coisas que não são, mas que ainda assim acreditamos ter valor”.
Portanto, por mais que estejamos “nos afogando em um mar de conteúdo”, o papel da arte continua sendo o mesmo, defende Ted Chiang: “As pessoas querem fazer e consumir arte. Isso faz parte da condição humana. A sociedade moderna muitas vezes dificulta isso, mas a arte é uma expressão do que significa ser humano. Isso sempre terá valor. Na verdade, pode-se argumentar que a arte é ainda mais importante hoje do que nunca, porque ela nos lembra do que realmente importa.”