O recém-lançado livro de Flávia Péret pela Editora Relicário, Coisas presentes demais, é escrito em fragmentos que tentam elaborar a perda da memória da avó que, padecida pelo Alzheimer, passa a viver em uma casa de repouso a partir da pandemia. Uma neta que até então não tinha sido “presente demais” na vida dessa avó, agora escreve 183 páginas que dão lugar a um amor inusitado dessa neta por essa avó. A escrita constrói esse amor não por identificação, mas por um gesto que faz do livro um presente. Uma neta escreve um livro inteiro para dar de presente à avó aquilo que ela mais quis: brilhar.
Diva
Deitada na espreguiçadeira da casa do meu tio, em frente à piscina, ela está descalça, as unhas do pé pintadas de vermelho. Óculos escuros, um vestido preto um pouco acima do joelho. Numa das mãos, ela segura uma taça de espumante, joga a cabeça para trás e os ombros para frente, imitando as poses das atrizes de cinema. Ela ri. Nessa foto, ela tem 86 anos. Lembro-me vagamente daquele dia […].
Para colocar a avó em cena, Flávia não revela seu nome, mas constrói uma personagem em sua radical complexidade, como uma figura que vai sendo montada de modo aproximado, em uma produção investigativa, apresentada pelos figurinos, cenários, enredos, falas, gestos, como se o estudo sobre essa personagem já fosse um modo de colocá-la em cena. Assim, uma neta dá notícias das fantasias de uma avó que amava se fantasiar no carnaval e indica o ponto exato em que essa fantasia desmonta: onde havia uma presença inquebrantável, uma figura vai se apresentando fantasmática, cada vez mais pelo contorno da fragmentação, da desmontagem, da ausência. Escrever esse livro se faz como gesto de resistência à saída de cena de uma presença tão forte e imponente que não sabe que está saindo de cena: “Mesmo sem lembrar que passou a vida tentando manter seus cabelos loiros e luminosos, os fios da avó ainda brilham”.
Coisas presentes demais tece um diálogo direto com Tamara Kamenszain e Sylvia Molloy, que escreveram diretamente sobre a desmemória de entes queridos causada pelo Alzheimer, mas também com Roland Barthes, que sabia que fotografia é ausência, fantasma, presença que se dá a ler pelo negativo, assim como escrever sobre alguém é muito mais um exercício de ler a si mesmo. Ainda, é possível escutar ecos indiretos de Annie Ernaux no modo ao mesmo tempo generoso e crítico de localizar a avó em seu contexto familiar, histórico, sociológico, geográfico. Assim, a partir de inquietações, os fragmentos vão buscando e traçando um inventário, situando-se no tempo, no espaço, na doença, com humor e uma dicção do interior de Minas Gerais, em uma mescla de pesquisa, memorial, anotação, cartilha, biografia, autobiografia, fazendo da peça que falta no quebra-cabeças um fio que conecta mulheres que vieram antes e depois dessa avó.
Menos que desembaraçar o fio, o livro aponta mais o nó sem ponto das narrativas de mulheres sobre mulheres, problematizando os silêncios, os personagens censurados, bem como o lugar das mulheres que faltaram na história, indicando que aquelas que pouco entraram em cena seriam protagonistas também pelo legado que deixaram: no nome de “Lia”, a cuidadora, lemos um verbo que, em outro fragmento, intitulado “Herança”, encontramos “Uma bisavó que amava os livros”. Pouco sabemos dessas mulheres, mas aquela que cuida e aquela que amava os livros se interligam tanto pelo ponto cego dessas breves presenças que apontam para suas lacunas quanto pelo ponto de encontro com a avó que, com mão cheias de linhas que não davam ponto sem nó, é espelhada no reflexo invertido de sua irmã – ou no avesso do bordado, como diria Tamara Kamenszain –, que terminou a vida também em uma casa de repouso, mas com mão vazias, “rasgando pedaços de papel”. Nesse “teatro de sombras”, a tessitura se faz pela costura, mas também pelos seus avessos, pelo puimento e pelos rasgos.
Nessa história de luxúria, tentações, excessos, ambições, paixão pela própria beleza, obsessão por espelhos, pecados de uma mulher pobre e interiorana que se identificava com o luxo, tinha delírios de riqueza, era maledicente e arrogante, mas ao mesmo tempo transgredia as normas do patriarcado, quase tudo começa com a maçã: “A recepção tem cheiro de Veja Multiuso aroma maçã verde. O laranja da cadeira combina com o verde da maçã. Nos contos de fadas, as maçãs nunca são verdes. A de Newton era vermelha, a de Eva também”. Não à toa, em um momento é dito que o livro pode ser uma “prestação de contas”. Aquela que sofre a queda geralmente é fadada a carregar uma dívida. Aqui, avó e neta parecem se intercambiar nesse lugar: “Pecado” é o título do fragmento em que lemos “Sinto que é mais fácil amar a avó aqui.” Uma neta confessa. Uma avó ama doces, é proibida de comer açúcar, mas mesmo assim come. O que tinha na casa da avó, não tinha na casa da neta: doces, novelas, espelhos, o lugar do pecado, o jardim das delícias, fruto proibido.
Era ali que ela existia, era ali que ela brilhava: “Sempre foi difícil convencê-la a ficar dentro de casa, mesmo quando começou a desequilibrar-se do salto, mesmo nas noites geladas de inverno, mesmo com 90 anos, e mesmo com a pandemia. A avó seguia se aprontando para passear no jardim”, lemos no final do livro. O jardim talvez seja o ambiente mais importante nesse livro, em suas variações de horta, quintal, terreiro. Esse cenário retorna no livro; logo nas primeiras páginas lemos: “Durante os últimos cinquenta anos, a avó dedicou-se a cuidar do seu quintal. O lugar era simultaneamente jardim e horta, e recebia o nome de terreiro porque é assim que as pessoas do interior de Minas chamam esses espaços localizados atrás das casas, onde coexiste uma mistura de pedra, terra, mato, canteiros, pomar e, às vezes, um pequeno galinheiro”. Esse era o “Xodó” da avó, como indica o título do fragmento citado. Ela se ocupava do jardim e fazia disso um dom, uma dedicação, uma doação, dando de presente aos outros um pouco do que cultivava: “As visitas não iam embora sem levar uma sacola cheia de limão, chuchu, tomatinho, couve, alface, alecrim, hortelã, cidreira, taioba, ora-pro-nóbis. Ela dividia com as filhas e com a vizinhança o fruto do seu trabalho com aquela horta”.
Quando ordenou que arrancasse sua horta pela raiz, perdeu o chão: “[…] jogou a enxada nas mãos de Lia e ordenou aos berros que ela arrancasse todos os pés de couve e alface, as cebolinhas, a hortelã, a taioba, o manjericão […]”. A devastação dos canteiros indiciou, para a neta, a doença. Na destruição daquilo que mais amava, uma mulher desmontava-se, desenraizava-se, devastava-se. Flávia, ao escrever essa história, incube-se de cuidar dos mofos, dos fungos, dos “bololôs”. Posicionando-se no lugar daquela que cuida, daquela que cultiva, ela dá vida ao que mais tornou essa mulher presente e restitui, de algum modo, o fruto a seu pé, a maçã à boca daquela que gostava de doces. Quem sabe, assim, ainda depois da queda, a avó continue passeando no jardim.
“Coisas presentes demais se torna um lugar para amar a avó”, diz a escuta aguda de Paloma Vidal em orelha ao livro. Coisas presentes demais, um eco do verso de Tamara Kamenszain, é um lugar para tornar não só a avó presente, mas para se situar na ausência do outro, para tornar presente “a memória que aquela pessoa tinha de nós”: localizar-se na desmemória da avó é um modo de resistir ao apagamento de si para o outro e de existir enquanto sujeito. Por outro lado, escreve-se a desmemória do outro para que seja possível falar também a partir de um ponto de ausência, ou seja, com alguma distância, porque uma “coisa presente demais” sempre pode se tornar insuportável. Em “ato falho”, lemos: “Em diversos momentos, em vez de escrever vó, escrevo vão”. Fazer frente ao imperativo da presença implica colocar a avó como ausente-presente e aceitar-se como ausente-presente nessa relação, para que seja possível amar. Colocando-a em cena em suas contradições, nem vilã nem heroína, sem romantizá-la, uma neta deixa na memória uma estrela (de)cadente cujo brilho que chega a nós indica algo que já não está mais lá.
Danielle Magalhães é professora de Teoria Literária na UFRJ e co-autora de No avesso da genealogia: netas, avós.