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quarta-feira, setembro 3, 2025

Crítica | Cães Perdidos (Lost Dogs) – Plano Crítico

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Jeff Lemire começou sua carreira de autor de quadrinhos com a autopublicação de duas edições da HQ Ashtray, contendo, no total, cinco histórias curtas enquanto trabalhava em um restaurante e estudava Cinema na faculdade. Foi uma iniciativa desesperada, mas perfeitamente compreensível, de alguém que precisava se provar em um momento difícil na vida em que ele, depressivo e ansioso, precisava fazer alguma coisa para levar sua arte ao público em geral. Outra parte de sua estratégia foi inscrever Ashtray como candidata ao Prêmio Xeric, da fundação homônima fundada por Peter Laird, cocriador das Tartarugas Ninja, que tem como objetivo laurear mentes criativas dos quadrinhos independentes que estão começando. Ashtray não levou o prêmio, mas Lemire não desistiu e fez o mesmo com seu projeto seguinte, Cães Perdidos (minha tradução direta de Lost Dogs, já que, até onde vi, essa HQ não foi publicada ainda no Brasil), ganhando então cinco mil dólares da fundação que foram empregados na publicação mais ampla e mais profissional da graphic novel, mas ainda sem nenhuma editora ligada a seu trabalho (a Ashtray Press, claro, é do próprio Lemire e imagino que ela só exista em nome).

Cães Perdidos foi, por assim dizer, a primeira HQ de Lemire em que ele não teve que pagar para publicar, o que definitivamente é um avanço, mas ainda longe de fazer dos quadrinhos uma real profissão. Por outro lado, é de pouco em pouco que a galinha enche o papo e sua graphic novel de algo como 100 páginas serviu de instrumento efetivo de demonstração de sua capacidade e de seu estilo, que ele pode então levar para pequenas convenções de quadrinhos e, com mais eficiência, abrir um pouco mais as portas para ele se tornar quem ele hoje é, um dos mais prolíficos e requisitados profissionais da área na América do Norte, tendo trabalhado – e ainda trabalhando – tanto com editoras independentes quanto com as duas maiores, DC e Marvel Comics. Curiosamente, a força inspiracional para a HQ foi o conhecido desafio das 24 Horas de Scott McCloud, talvez mais lembrado como autor de Desvendando os Quadrinhos, que consiste em mergulhar de cabeça na confecção de uma HQ de 24 páginas no mesmo número de horas, mas sem nenhum tipo de preparação anterior.

Lemire não conseguiu chegar ao fim do desafio de McCloud, mas, em 12 horas, ele conseguiu criar as bases para Cães Perdidos, continuando seu projeto ao longo das semanas seguintes até acabar. O resultado é uma brutal e visceral história de amor em que um gigante gentil que veste uma camiseta com listras vermelhas – a única cor da HQ que é também refletida no sangue cujo artifício passaria a ser uma das marcas da arte de Lemire – que, depois de perder tudo o que mais ama eu uma viagem à cidade grande, retorna da quase morte para sofrer ainda mais. Não é uma história absurdamente original. Muito ao contrário, ela parte de um tropo familiar que já vimos em filmes, séries e quadrinhos em enorme quantidade, mas o autor empresta sua visão de mundo que acaba subvertendo as expectativas sobre as atitudes do enorme protagonista que se vê manipulado por um outro personagem tão ou mais perdido do que ele. Cães Perdidos reveste seu tema central de muita dor, tanto física quanto mental, e muita tristeza, emocionando e angustiando facilmente o leitor mesmo que o desenvolvimento não traga realmente nada de diferente.

O que é diferente – e sempre é, quando Lemire desenha – é seu estilo inconfundível, com traços que podem ser chamados de grosseiros, proporções corporais estranhas, quase caricatas, e rostos brutos, beirando o disforme. É uma arte do tipo “ame-a ou odeie-a” e já afirmo logo que estou no primeiro grupo desde que conheci o autor com Sweet Tooth, lá pelos idos de 2010 ou 2011. Em Cães Perdidos, Lemire pela primeira vez apresenta uma obra completamente consistente, artisticamente falando, criando um submundo de tragédia que se vale de sua propensão mais sombria desse seu começo de carreira, com o uso de muito preto e de uma visão de mundo fortemente pessimista e desesperançosa. Seu protagonista é, muito claramente, um protótipo tanto de Lou, de Condado de Essex, quanto de Jepperd, de Sweet Tooth, seja no aspecto físico ou na construção psicológica, algo que é também outra marca de seu trabalho ao longo dos anos, ou seja, o homem torturado e socialmente distante, mas com coração de ouro.

Cães Perdidos, a graphic novel quase gótica de Jeff Lemire em começo de carreira serviu para provar para o mundo e especialmente para ele próprio que ele era capaz de criar uma narrativa única longa na forma de quadrinhos, abrindo caminho efetivo para seu desenvolvimento profissional e, mais importante ainda do que isso, todas as conexões e oportunidades que o levaram a construir sua vertiginosa carreira no meio em que sempre desejou trabalhar. E, ainda bem, esse seria seu último trabalho autopublicado, já que a ambiciosa, mas pessoal Contos da Fazenda, primeiro capítulo do que viria a ser Condado de Essex, estava próxima de se tornar realidade, mesmo que, em 2005, Lemire ainda estivesse longe de imaginar o impacto dessa HQ em sua vida.

Cães Perdidos (Lost Dogs – Canadá, 2005)
Roteiro: Jeff Lemire
Arte: Jeff Lemire
Editoria: Jeff Lemire
Editora original: Ashtray Press
Data original de publicação: 2005
Páginas: 104



[Fonte Original]

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