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quarta-feira, setembro 3, 2025

Crítica | Condado de Essex (graphic novel) – Plano Crítico

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A leitura de Condado de Essex é uma magnífica experiência da Nona Arte. E não estou falando, aqui, da forma como Jeff Lemire, em seu primeiro trabalho remunerado em quadrinhos, consegue costurar suas três histórias principais – Contos da Fazenda, Histórias de Fantasmas e Enfermeira do Interior -, transformando-as em uma narrativa única ao final, ainda que isso também seja magnífico, não tenham dúvida. Falo mesmo é do puro prazer narrativo e visual que é ler essas histórias entrelaçadas que se passam no condado do título, em Ontário, no Canadá, onde o autor nasceu e cresceu, já que Lemire, no que pode ser chamado de uma semiautobiografia, captura o que é viver e crescer com delicadeza, lirismo e inteligência, abordando a infância e juventude com precisão, sofisticação e um toque de realismo mágico, o rito de passagem para a fase adulta e, depois, para a idade mais avançada, sem se esquecer de trabalhar com a inevitável, mas naturalmente assustadora morte, mas sempre com um olhar sereno e uma voz tranquilizadora que deixa o leitor emocionado e, ao mesmo tempo, absolutamente contagiado pela história que, na versão completa lida para a presente crítica, conta ainda com O Clube de Boxe do Condado de Essex e A Triste e Solitária Vida de Eddie Orelhas de Elefante, duas breves histórias que funcionam como epílogos.

Contos da Fazenda, a primeira graphic novel do conjunto, aborda a vida do menino Lester Papineau, basicamente um avatar de Lemire, que vive em seu mundo de sonhos, sempre usando uma capa e uma máscara como se fosse um dos super-heróis que ele lê em HQs que compra na mercearia do posto de gasolina e que desenha quando pode (os desenhos de Lester são realmente os da infância de Lemire, em uma jogada muito bacana). Ele vive basicamente isolado em uma fazenda com seu também solitário tio Ken, com a narrativa dividida ao longo das quatro estações de um ano, com Lester estabelecendo uma conexão com o grandalhão ex-jogador de hockey no gelo Jimmy LeBeuf, que trabalha no posto de gasolina. Usando grandes espaços abertos para contrastar com a pequenez do jovem Lester, Lemire cria um ambiente que parece fazer de tudo para o garoto conformar-se com a vida que tem, mas que ele usa para viver suas aventuras imaginárias contra supervilões, aventuras essas em que Jimmy embarca, solidificando a amizade entre eles, apesar da diferença de idade.

É importante salientar – algo cada vez mais necessário no mundo cínico em que vivemos – que essa conexão entre Lester e Jimmy não tem nada de sombria. Ao contrário, ela é muito bonita e pura e serve de uma válvula de escape para o menino que tem uma relação cordial com o tio, mas não mais do que isso, algo natural considerando que ambos perderam o laço familiar com a morte de Claire – mãe de um e irmã do outro – há um ano e que foi só com o pedido desesperado dela em seu leito de morte, que Ken abriu seu lar para Lester. O que a história está interessada em abordar é a fragmentação de uma família e o amadurecimento de Lester e, em relativamente poucas páginas, sempre com um pano de fundo melancólico, mas que premia o leitor a cada página, ela mais do que consegue cumprir seu objetivo.

Histórias de Fantasmas começa com o idoso alcóolatra Lou Lebeuf em sua fazenda sendo visitado por sua enfermeira e, não demora, o que Lemire faz é retornar ao passado, para a década de 50, para lidar com uma “história de origem” que estuda o relacionamento profundo entre o jovem Lou e seu irmão grandalhão Vince que chega para visitá-lo e tem sua primeira dose de “cidade grande”. Ambos jogam hockey em uma liga semiprofissional, esporte que está no DNA dos canandenses em geral e no de Lemire em particular, com essa estrutura servindo de pano de fundo para contar como Lou acabou sozinho e quase esquecido na varanda de sua fazenda, no começo da história. É, talvez, a mais ambiciosa e complexa das cinco histórias que fazem parte de Condado de Essex, e é fascinante ver como o autor navega pelos aspectos macro a partir dos elementos micro, sem perder de vista a conexão entre os irmãos que, aos poucos, vai sendo colocada em teste, tensionada até sua fragmentação.

Lemire retorna para o presente para então revisitar outras épocas do passado de Lou e Vince, aos poucos construindo uma bela, mas ao mesmo tempo angustiante narrativa de amor encontrado e perdido, de família unida e separada, de vidas consumidas pela dor. Se Contos da Fazenda foca no amadurecimento de um menino, Histórias de Fantasmas usa o fim de uma vida para estudar o auge dela, criando a percepção exata de finitude e da importância de decisões que tomamos ao longo das décadas e as consequências que elas acabam trazendo.

Por fim, Enfermeira do Interior encerra a “saga” do Condado de Essex focando justamente na enfermeira que ganha destaque antes como a cuidadora de um Lou velho e fragilizado. Nela, a narrativa retorna ainda mais no tempo, para 1917 e também para o período em que Contos da Fazenda se passa e também ao de Histórias de Fantasmas, com a narrativa servindo de cola unificadora de tudo o que veio antes. Das três, essa terceira é, talvez, a única delas que não fica completamente de pé de maneira isolada, pois é evidente que Lemire a criou justamente como sua maneira de criar o entrelaçamento final de seu épico pessoal. Mas isso de forma alguma detrai da experiência, pois a história é, ao mesmo tempo, o começo e o fim de tudo que o autor  expõe, criando um arco narrativo amplo e umbilicalmente conectado ao longo de quase 100 anos de história. Os dois contos finais, O Clube de Boxe do Condado de Essex e A Triste e Solitária Vida de Eddie Orelhas de Elefante tratam de histórias no mesmo lugar, mas sem o tipo de conexão que as três principais têm, servindo muito mais de detalhamento do universo rural criado por Lemire com base em suas memórias e desejos de criança.

Condado de Essex é um autor encontrando equilíbrio. Ele sai de sua pegada sombria em Ashtray e em Cães Perdidos, ambas autopublicadas, e consegue fazer da luz e da sombra grandes parceiras que refletem a vida como ela é, repleta de altos e baixos, de alegrias e tristezas, de amor e de arrependimento. Mais do que isso ainda, essa graphic novel marca o momento em que Jeff Lemire dá forma final à sua voz, em que ele mostra para si mesmo e para o mundo que ele tem absoluto domínio de sua técnica e que ele tem muita coisa a dizer. Condado de Essex é uma daquelas obras-primas de começo de carreira que se tornam a base para tudo, absolutamente tudo que viria a seguir.

Condado de Essex (Essex County  – EUA, 2007 a 2011)
Contendo: Tales From the Farm, Ghost Stories, Essex County Boxing Club, The Country Nurse e The Sad and Lonely Life of Eddie Elephant-Ears
Roteiro: Jeff Lemire
Arte: Jeff Lemire
Editoria: Chris Staros
Editora original: Top Shelf Productions
Datas originais de publicação: Tales From the Farm (07 de março de 2007), Ghost Stories (10 de outubro de 2007), Essex County Boxing Club (2008), The Country Nurse (14 de janeiro de 2009) e The Sad and Lonely Life of Eddie Elephant-Ears (2011); 2009 (encadernado sem a última história); 2011 (encadernado completo – versão lida para a presente crítica)
Editora no Brasil: Editora Mino
Data de publicação no Brasil (encadernado completo): agosto de 2017
Tradução: Dandara Palankof
Páginas: 516



[Fonte Original]

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