Depois de autopublicar duas edições de Ashtray em 2003 e 2004 com seu próprio dinheiro, concorrer ao Prêmio Xeric, ganhá-lo e usar o dinheiro resultante para autopublicar Cães Perdidos em 2005, Jeff Lemire finalmente conseguiu ser efetivamente pago para trabalhar no que ama com Condado de Essex, uma trilogia de graphic novels de cunho semi-autobiográfico publicada separadamente e em conjunto pela Top Shelf Productions entre 2008 e 2009. O autor canadense tanto fez que finalmente conseguiu seu sonho de realmente entrar na indústria que tanto amava e ainda ama, levando a concorrer a dois prêmios Eisner por sua criação. Essa sua visibilidade levou-o a ser contactado por Bob Schreck, do prestigiado selo Vertigo, da DC Comics, que indagou se Lemire não gostaria de propor um projeto para ele. Como deixar passar essa oportunidade, não é mesmo?
A ideia para O Ninguém veio das leituras que Lemire estava fazendo na época, primeiro revisitando a bibliografia de H.G. Wells e, depois, mergulhando na clássica HQ do Soldado Desconhecido, de Joe Kubert. O que se formou na mente de Lemire, então, foi uma releitura de O Homem Invisível inspirada pela pegada artística de Kubert em seu icônico soldado com bandagem no rosto, em uma narrativa de cidade pequena de Condado de Essex, algo que foi aprovado quase que instantaneamente por Karen Berger, então editora executiva da Vertigo, que estava planejando uma linha de graphic novels mais autorais. Essa seria, então, a primeira vez que Lemire passaria por todo o processo editorial “normal”, já que não foi exatamente assim com a Top Shelf, já que seu Contos da Fazenda foi basicamente comprado pronto.
Exatamente por ser imaginado para ser algo de pegada indie, a premissa é simples e objetiva: em um belo dia, John Griffen, homem com o rosto todo enfaixado e com um “óculos de natação” no rosto, chega à cidadezinha de Boca Larga e hospeda-se indefinidamente no motel de lá, imediatamente atiçando a curiosidade dos locais sobre quem ele é, o porquê das bandagens e o que ele veio fazer por ali. Narrada em primeira pessoa por Victoria, ou Vickie, a filha do dono do restaurante local que estabelece uma amizade relutante com Griffen, dois terços da história são dedicados à aclimatação do forasteiro ao lugar, sem que Lemire esmiúce sua origem e seu propósito, ou mesmo sequer deixando totalmente claro se ele, afinal de contas, é mesmo invisível. Somente no terço final é que a ação começa e termina quase que do nada e um tanto quanto abruptamente, deixando dúvida sobre o destino do homem enfaixado.
Talvez por se sentir pressionado ou talvez pelo formato pré-definido estabelecido pela Vertigo, Lemire retrocede alguns passos na construção de sua história. Seu objetivo muito claramente não é recontar a história do Homem Invisível de Wells, mas sim estudar o que é ser alguém quando ninguém o vê, ou seja, como é ser invisível mesmo sendo plenamente visível. Griffen é como o reflexo explícito, de ficçaõ científica mesmo, do que Vickie é: uma jovem mulher que não aguenta mais não ser ninguém em uma cidade que basicamente não existe. Enquanto Griffen, que veio da cidade grande, escolheu se esconder em Boca Larga, Vickie é capaz de qualquer coisa para seguir o caminho inverso e é esse choque que movimenta grande parte da narrativa e que realmente a torna interessante. Quando Lemire então sai daquilo que realmente, à época, sabia fazer, e envereda pelo mistério sobre o passado de Griffen, ele parece fazer isso um pouco de má vontade, querendo permanecer pequeno, mas sem poder por estar escrevendo por um selo que até pode ser chamado de indie, mas que já tinha a reputação de ter grandes obras autorais de personagens famosos como Monstro do Pântano, Homem Animal e Patrulha do Destino.
Dessa maneira, a queda de braço entre o Lemire de Condado de Essex e o Lemire futuro, capaz de escrever personagens clássicos variados das duas grandes editoras americanas ficou em um meio termo que não é lá, nem cá, com Griffen e Vickie perdendo-se nessa brincadeira. A história ainda enternece e há bons ensaios de caminhos interessantes para os personagens, mas nada realmente avança a contento e Lemire fecha seu personagem literal e metaforicamente em um quarto de motel sem fazer muito com ele, o que obviamente reflete em Vickie e na pressa final em criar uma sequência de ação para sacudir o status quo. Por outro lado, Lemire mais uma vez mostra que sua arte estava afiada na época e, com traços mais refinados e bem acabados, ainda que bem característicos dele e com leve e agradabilíssima coloração azul bebê, ele materializa visualmente sua narrativa com até mais categoria do que ela realmente merecia. Griffen é fascinante e o que Lemire faz nos quadros para manter a ambiguidade sobre sua invisibilidade é um belíssimo exemplo de como envolver o leitor na dúvida, com diversos momentos de um lirismo muito bonito.
O Ninguém é uma leitura apenas satisfatória que tem uma arte de se tirar o chapéu. Sua maior importância tanto para Lemire quanto para nós, leitores, é que essa graphic novel foi a porta de entrada do autor na Vertigo que, no mesmo ano, começaria a publicar seu aclamado Sweet Tooth. O criador de quadrinhos canadense que, seis anos antes, gastava seu próprio dinheiro mirrado obtido com trabalho em um restaurante, chegava à Primeira Divisão da carreira que escolheu. Uma ascensão meteórica que abriu e continua abrindo todas as portas para ele.
O Ninguém (The Nobody – EUA, 2009)
Roteiro: Jeff Lemire
Arte: Jeff Lemire
Letras: Sean Konot
Editoria: Bob Schrek
Editora: Vertigo Comics (DC Comics)
Data original de publicação: 08 de julho de 2009
Editora no Brasil: Pipoca e Nanquim
Data de publicação no Brasil: 21 de junho de 2019
Tradução: Bernardo Santana
Páginas: 156