Esta é a primeira edição da revista em quadrinhos dos Trapalhões após uma reformulação da linha editorial promovida pela Bloch, em 1979, que passou a seguir o comando do autor, editor e publicitário Ely Barbosa. Aqui, uma das mudanças imediatamente sentidas foi o encurtamento das histórias, uma adequação ao formato mais conhecido e esperado das HQs brasileiras naquele final de década e uma reformulação da equipe criativa, que sempre foi um problema nesta fase da trupe, principalmente em relação à arte. E para a edição que dá início à grande mudança, nada mais justo que uma homenagem direta à série global Carga Pesada, fenômeno de audiência exibido entre maio de 1979 e janeiro de 1981, que contava as histórias de Pedro (Antônio Fagundes) e Bino (Stênio Garcia), dois caminhoneiros com personalidades bem diferentes, muitas mercadorias para entregar e uma capacidade quase proposital de se meter em encrencas.
Descarga Pesada abre os trabalhos colocando o time inteiro para trabalhar. Após a Transportadora Trapa receber um telefonema pedindo para “transportar uns bichinhos“, o grupo se organiza para cumprir a tarefa e colocar as mãos numa boa grana. A história tem o humor muito característicos das aventuras dos Trapalhões e também me lembrou um pouco de Mazzaropi (especialmente o filme Sai da Frente), porque tem um humor fácil de agradar — a despeito da homofobia de algumas cenas — e porque faz rir diante do rumo inesperado que os eventos tomam, seja por parte dos Trapalhões, seja por parte dos personagens que interagem com eles. É verdadeiramente uma “descarga pesada“, com os coitados dos elefantes do circo, cheios de personalidade, perdendo o esperado e merecido banho de mar. Logo na sequência vem uma historinha curta, daquelas de uma página, intitulada Ponto de Ônibus. É uma trama de situação inesperada que se resolve sem grandes complicações e após uma sequência de quadros onde a piada é sustentada para um efeito situacional: um funcionário da prefeitura espera num ponto de ônibus até o carro de recolhimento aparecer e ajudá-lo a retirar o ponto do local, deixando todo mundo puto. E com razão!
Explorando situações do dia a dia, como empresários caloteiros, exploradores e maus pagadores — alguns até bem violentos — Os Cobras da Cobrança tem uma comicidade fácil, mas não faz rir tanto quanto a aventura anterior. São cenas ágeis onde a trupe, contratada pelo desonesto dono de uma Cobradora de Títulos Vencidos, tenta fazer o brutamontes Chico K. Loteiro pagar o que deve. Existem quadros que são mais legais que outros e a arte não se mantém atrativa o tempo inteiro, o que faz a gente correr com a leitura para entender qual será o destino dos protagonistas e onde o roteirista vai chegar. O final traz uma daquelas situações compensadoras e, de fato, engraçada, quando os trabalhadores-trapalhões ensinam uma lição ao caloteiro-mor. Sim, é tudo muito caricato, mas faz parte do gênero, então não há muito o que se espantar com isso. E em mais duas histórias curtas consecutivas, protagonizadas por Didi (O Novo Galã e Banqueiro), temos boas piadas com resoluções surpresa. No primeiro caso, Didi “se achando” porque foi contratado para fazer um comercial, mas, quando é exibida a propaganda na TV, mostram apenas a mão do modelo segurando o cartaz com o produto. Já no segundo caso, um tanto mais previsível, temos uma brincadeira legal com a palavra “banqueiro“, referindo-se ao novo trabalho que o Sr. Mocó arranjou.
De todas as possibilidades que poderia ter nessa revista, eu realmente não esperava uma história como Robinson Cruz Didi, que brinca com a saga de Crusoé a partir de um sonho. A exata mesma dinâmica desta trama seria reaproveitada na edição #25, na história dos bandeirantes em contato com uma tribo de indígenas canibais, o que mostra reciclagem a curto prazo de temas. Aqui, o elemento racista é ainda mais claro e fácil de identificar, embora o roteiro não passe muito tempo na cena problemática: ela é mais uma etapa dos impasses e experiências vividas por Cruz Didi nessa ilha que ele acreditava ser o Rio de Janeiro. Não é uma trama muito engraçada, no geral, embora tenha alguns momentos muito bons. E ela é seguida de outra história curta (também protagonizada por Didi) chamada O Pulo, que representa o medo de qualquer pessoa que já frequentou uma piscina coletiva em período de férias: tudo completamente lotado e sempre aparece um maluco sem noção que quer ficar pulando, dando piruetas e fazendo escarcéu onde não cabe mais ninguém.
O último bloco da revista começa com A Aposta, que mostra o poder do interesse e como ele pode voltar de maneira inesperada para os interesseiros. Gosto da ideia de um número dito ao telefone e “pego de orelhada” por pessoas à volta, ser confundido com um número de loteria e gerar toda uma adulação dos amigos ao Didi. É bem o tipo de performance de amizade ou “tratamento vip” que pessoas, empresas e instituições fazem, sempre esperando algo em troca. O bom é que, aqui, o carma vira rapidinho. Já na vida real, a coisa começa a fazer parte do sistema e se torna corrupção institucionalizada e estrutural, vista em todas as esferas da sociedade, muitas vezes sem punição. E, finalmente, temos uma aventura de todo o grupo nas histórias curtas! O Plano traz um combinado da trupe para assaltar um banco (que acaba sendo um banco de verdade, com sacos de dinheiro de mentirinha), mas não acho que esta situação combina com quatro adultos brincando de polícia e ladrão, cangaceiros ou coisa que o valha. É o tipo de história que combina muito mais com a fase infantil da turma, que seria publicada anos depois, pela Editora Abril.
Eu adoro o dinamismo e o preenchimento de espaço da arte em A Mascote, última história longa do volume. Aqui, temos uma corrida hilária dos Trapas para capturar um porquinho que está fugindo de um homem. Não sei se é porque eu realmente gosto desse tipo de premissa (humanos vivendo um caos cômico causado por animais), mas o fato é que tudo, nessa história, tem um charme irresistível, e acho que ela é mesmo a melhor do volume. Confesso que me esqueci do título enquanto lia, então, quando chegou ao fim e a reviravolta aconteceu, eu abri um sorriso enorme e surpreso. Não sei se o leitão em questão vai aparecer em outras revistas do grupo (espero que sim!) mas só a ideia de salvarem um bichinho inteligente desses do abate já valeu — a propósito, eu não sou vegano e nem vegetariano, estou apenas seguindo a lógica do roteiro, do apego a um animal que faz mais sentido ser adotado como mascote do que servir de churrasco. E, para encerrar, uma hilária tirinha sem título, protagonizada por Didi e Muçum, que ficam falando as coisas mais maravilhosas sobre uma jabá na vitrine de um açougue e uma bela garota acha que estão falando dela, gerando enorme frustração no final… é impagável!
Os Trapalhões #23: Descarga Pesada e Outras Histórias (Brasil, agosto de 1979)
Editora: Bloch
Roteiro: Não creditado.
Arte: Não creditado.
Cores: Não creditado.
Letras: Não creditado.
Capa: Não creditado.
52 páginas.