Chantal Montellier soube muito bem como transformar paranoia política em arte reflexiva e crítica aos Estados e aos sistemas. Já nos anos 70, a autora desenhava e escrevia histórias sobre autoritarismo e relações sociais de poder, criando distopias que eram praticamente uma faceta analítica da sociedade vigente, potencializadas com uma visão de algumas décadas no futuro. Social Fiction reúne três dessas tramas: Wonder City, Shelter e 1996, onde a autora fala de vigilância total, eugenia estatal e consumismo desenfreado. Seu método de trabalho explica muito da força que vemos em suas páginas. Ela fotografava pessoalmente os locais e desenhava depois — o shopping Belle Épine, em Paris, virou o cenário claustrofóbico de Shelter, por exemplo. Essa abordagem quase documental ajuda a criar a impressão de que conhecemos os lugares que ela está desenhando, o que faz a história se tornar ainda mais inquietante.
Wonder City (Métal Hurlant #80 a 84 – outubro de 1982 a fevereiro de 1983) mostra bem isso, ao retratar uma Nova York eugênica, dominada por um certo Doutor Nimbus, que “se preocupa com a saúde de todos”, mas que esconde o fato de estar controlando os corpos das mulheres e tornando estéreis, após os 15 anos, as pessoas pretas e pobres. É uma história que nos deixa tensos, porque parece que a união incomum entre um técnico do sistema e uma “rebelde” vá dar em problemas muito sérios, mas a autora reserva o embate para um outro campo. Ela fala sobre o fato de a polícia e o Estado esperarem certas manifestações populares para usá-las como desculpa e iniciar um novo massacre; e de como toda a rede de instituições e poderes oficiais se apoiam para manter o controle sobre todos os aspectos da vida das pessoas. É aterrador.
Shelter (Métal Hurlant #31 a 42 – julho de 1978 a julho de 1979) vai um pouco mais fundo nessa investigação, usando um shopping subterrâneo como laboratório onde o consumismo e planos do tipo “bilionário fascista com mania de querer ser Deus” dão origem a uma realidade autoritária. E o princípio dessa nova sociedade chega a ser irônico: um suposto bombardeio nuclear acontece na parte exterior do shopping, que fecha suas portas especiais para conter a radiação e promete manter em segurança, pelo tempo necessário, os clientes que ali estavam, na parte subterrânea, sãos e salvos da catástrofe exterior. O final traz um bom debate sobre narrativas criadas para alienar e prender populações inteiras, assim como a junção de ideologias, fake news e nuances de pós-verdade que podem perfeitamente ser aplicadas a muitos canais de TV, jornais e mídias informativas que temos hoje, metaforicamente mantendo milhões de pessoas em seus “abrigos” contra uma certa “radiação mortal” da qual todos devem se proteger.
1996 (Métal Hurlant #7 a 27 – maio de 1976 a março de 1978) deixa o leitor um pouco confuso com as vinhetas fragmentadas que exploram locais e rostos da degradação social, fazendo uma montagem que demora para funcionar, mas que diz tudo, quando nós finalmente entendemos o seu propósito e a maneira como se encaixa em toda a trama. So Fast in Their Shiny Metal Cars, a história mais longa deste arco, é genial e tenebrosa, ao mesmo tempo. Nela, um ferro-velho é transformado em metáfora sobre como o racismo funciona. A separação dos cadáveres por cor/raça — os brancos são embalsamados nos andares de cima, e os pertencentes a qualquer outra etnia ressecam lentamente nos andares inferiores — mostra como a supremacia branca contamina até mesmo o mercado da morte. Em certa medida, me lembrou bastante o filme Abutres (2010), de Pablo Trapero. A sequência que vai do glamour publicitário dos carros novos até a pilha de “sucata humana” tem uma progressão aplaudível, com uma noção muito escrupulosa de ritmo interno e atmosfera da história, além de uma diagramação inteligentíssima.
Essas três histórias de Social Fiction antecipam muitas questões que dominam os debates atuais sobre vigilância digital, direitos reprodutivos e manipulação algorítmica. Suas narrativas são quase profecias e partem de uma observação atenta do que já estava acontecendo, misturando intuição com análise social. Com sua arte e seu texto, Chantal Montellier estabeleceu novos padrões para o que a ficção científica e política poderia fazer nos quadrinhos. Esses três arcos nos trazem uma experiência estética poderosa, talvez até mais assustadora do que a autora pensou que seria, uma vez que a realidade não só parece igualar-se aos absurdos que ela registrou aqui, como, em alguns casos, até superá-los. Quem duvidou que capitalismo tardio poderia fazer algo pior que os piores pesadelos das artes?
Social Fiction: Wonder City, Shelter e 1996 (França, 1976 a 1983)
Publicação original: Métal Hurlant
Roteiro: Chantal Montellier
Arte: Chantal Montellier
Tradução: Fernando Paz
Edição lida para esta crítica: Comix Zone, 2022
184 páginas