Durante muito tempo se acreditou que o domínio de vastas extensões do território nacional por organizações criminosas fosse um problema restrito às comunidades e regiões conflagradas do Rio de Janeiro e uma ou outra cidade brasileira. Um estudo recente de pesquisadores das universidades de Chicago e do Wisconsin, publicado pela Cambridge University Press, desfaz esse mito. A pesquisa estima que aproximadamente 26% da população brasileira, entre 50,6 milhões e 61,6 milhões, está submetida às regras das facções do crime organizado — algo como uma Itália sob o jugo das máfias. De acordo com a análise, realizada com base em sondagens do Latinobarómetro, o Brasil é disparado o país com a maior presença de facções criminosas no continente (a segunda colocada é a Costa Rica, com 13% da população sujeita ao governo do crime).
Há várias explicações para a persistência dessa realidade trágica. As organizações criminosas ocupam o espaço do Estado em várias dimensões. Não só no controle de serviços públicos, como fornecimento de gás, coleta de lixo, transporte ou sinal de telefonia e internet. Mas também pela imposição de leis e “tribunais” próprios, de um sistema de governança que anula a principal prerrogativa do Estado — o monopólio do uso legítimo da força.
Paradoxalmente, quando consolidam poder, as facções acabam por reduzir a violência. Não é outro o motivo, dizem os pesquisadores, para haver conexão entre a queda das mortes violentas em São Paulo nos anos 2000 e a expansão do Primeiro Comando da Capital (PCC), maior facção criminosa do país. A hegemonia da facção estabelece uma “paz” negociada com outros grupos, impõe maior silêncio às comunidades e facilita acordos espúrios com as autoridades policiais. Mata-se e rouba-se menos, para que os negócios ilegais transcorram sem atropelo. O fluminense Comando Vermelho (CV) usa os mesmos métodos. A pesquisa relata a expulsão, no Amazonas, de dois homens punidos pelo CV por bater em suas mulheres. Não interessam ao crime ocorrências que exijam a presença da polícia.
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A pesquisa também constata outro paradoxo: a associação entre o aumento da repressão pelo Estado e a ampliação dos domínios do crime. Na esteira de operações policiais sem critério nem planejamento, cujo objetivo é apenas demonstrar força e cujo resultado costumam ser tiroteios irresponsáveis que matam moradores, a população passa a aceitar a aparente tranquilidade do controle pelas facções, mesmo que falsa.
A operação movida na semana passada contra o PCC aponta um caminho promissor para derrotar as facções. O estudo fornece ainda mais argumentos para que o poder público combata o crime organizado com base na cooperação entre diferentes esferas do governo, em investigações e inteligência, dando prioridade ao sufocamento das finanças das quadrilhas. É um trabalho que precisa ser executado com apoio de outros países, dada a expansão internacional do crime. A pesquisa mostra, por fim, por que é urgente e necessária a agenda legislativa que permita coordenação no combate ao crime. Em especial, a PEC da Segurança, que promove articulação entre governos federal e estaduais, e a nova Lei Antimáfia, que cria mecanismos para enfrentar uma criminalidade hoje mais organizada que o próprio Estado.