Para as gerações X e Y (Millennials) nem faz tanto tempo assim… No final da década de 1980, a filantropia era sinônimo de práticas assistencialistas e o relatório Nosso Futuro Comum (Comissão Brutland, 1987) apresentava dados inéditos sobre o aquecimento global, as chuvas ácidas e a destruição da camada de ozônio e sugeria à Assembleia Geral das Nações Unidas a realização de uma conferência internacional para avaliar esses e outros grandes impactos ambientais em curso, como perda da biodiversidade e ocorrências de desastres ecológicos de responsabilidades industriais.
Se a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92), realizada no Rio de Janeiro em 1992, integrou definitivamente as questões ambientais à agenda política, o conceito do triple botton line, cunhado por John Elkington, organizou a sustentabilidade como uma agenda empresarial. Ao estabelecer que uma organização ‘sustentável’ deveria ser financeiramente viável, socialmente justa e ambientalmente responsável, o chamado tripé da sustentabilidade pautou a trajetória de institucionalização da sustentabilidade empresarial e pavimentou os caminhos para o monitoramento, avaliação e transparência dos investimentos socioambientais das empresas e seus resultados.
A transição de uma postura assistencialista na esfera social e refratária na ambiental para o comprometimento público com ações estruturadas, integradas ao negócio, tiveram como vetores o controle e pressão social por transparência e desempenho e, mais recentemente, a adoção dos critérios ASG (ambientais, sociais e de governança) pelo setor financeiro para a comparação entre empresas da economia real e tomada de decisão sobre produtos e investimentos. Nesse percurso de consolidação dos temas da sustentabilidade, instrumentos e padrões guiaram as empresas na estruturação de suas agendas. Das normas da série ISO 14000 ao Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), essas referências articularam conhecimento técnico-científico e gestão empresarial.
A crise climática – sendo o equilíbrio climático um dos seis limites planetários ultrapassados pela ação humana sobre os sistemas planetários – lança as empresas no centro da transição para economia de baixo carbono. Na corrida contra o tempo para manter o limite da temperatura média global abaixo de 1.5ºC em relação ao parâmetro pré-industrial, a agenda climática nos ensina que o uso de padrões para mensuração e relato e plataformas de transparência são alavancas poderosas para ambição e consistência entre compromisso e prática.
Ao munir as diferentes partes interessadas – pares, concorrentes, clientes, investidores, sociedade civil – de informações para analisar, aprender e avaliar a performance das organizações, iniciativas com esse foco impulsionam o avanço nas etapas de diagnóstico (que inclui os inventários), planejamento e implementação. Também enfraquecem as práticas de greenwashing, ao evidenciar quando ação e resultado não condizem com o discurso público.
Lançado em 2008 pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGVces) em parceria com o World Resources Institute (WRI), o Programa Brasileiro GHG Protocol estabeleceu um programa nacional voluntário de inventários corporativos de gases de efeito estufa (GEE) baseado no padrão internacional GHG Protocol, adaptado à matriz econômica brasileira, e criou o primeiro registro público online do país para divulgação transparente dessas informações. A iniciativa contou com a colaboração do Ministério do Meio Ambiente, o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), o World Business Council for Sustainable Development (WBSCD) e 27 empresas fundadoras.
Em 15 anos, as organizações relatantes passaram de 23 em 2009 para 305 em 2021; atualmente são mais 600. Destaca-se que 60% das empresas chegaram ao selo ouro, conferido para inventários completos e auditados por terceiros, o que demonstra maturidade neste primeiro passo para a gestão das emissões de GEE. A adesão massiva e crescente a um programa voluntário denota a mudança cultural nas organizações com a qual o Programa contribuiu significativamente ao combinar metodologia e ferramenta para não-especialistas, sem perda de integridade, capacitação técnica, atualização com base na ciência, benchmarks setoriais e reconhecimento público.
A hora e vez da agenda de adaptação
Hoje, a crise climática é estado de emergência instalado. Eventos extremos aumentam exponencialmente com o aumento da temperatura e os compromissos atuais no âmbito do Acordo de Paris nos levam para um cenário de 2.5oC em 2050. Não à toa, afirma-se que é chegada a hora e vez da agenda de adaptação à mudança do clima: investir em prevenção dos impactos que os eventos climáticos causam nos territórios, populações, ecossistemas e infraestrutura e em capacidade de resposta é humanitariamente urgente, ecologicamente necessário e economicamente racional.
A Confederação Nacional dos Municípios estima que em pouco mais de uma década, entre 2013 e 2024, as perdas e danos gerados por desastres climáticos nas cidades brasileiras superaram R$ 732 bilhões. Apenas em 2024, os danos chegaram a R$ 92,6 bilhões. Mais de 473 milhões de pessoas foram impactadas e quase três mil mortes resultaram desses eventos. Considerando apenas os eventos hidrológicos – como chuvas torrenciais, enchentes, secas e estiagens – no período entre 2020 e 2023, a FIEMG aponta prejuízos da ordem de R$ 41,2 bilhões para o setor privado, com a agropecuária, serviços e indústria figurando como os setores mais impactados.
Por outro lado, estudo recente do WRI demonstrou que cada dólar investido em adaptação gera mais de US$ 10,50 em benefícios no período de dez anos. A análise de 320 projetos de adaptação e resiliência, revelou uma taxa média de 27% de retorno, posicionando a adaptação como uma das áreas mais relevantes para investimento na atualidade. Os benefícios vão muito além de perdas evitadas, abarcam geração de empregos, ganhos de produtividade, comunidades mais saudáveis e melhoria ambiental, demonstrando que investimentos em adaptação são do tipo de “não-arrependimento”, isso é, geram valor mesmo quando riscos de desastres não se confirmam.
Mesmo assim, apenas 5% do financiamento climático global em 2021-2022 (US$ 63 bilhões) foi direcionado para adaptação. No Brasil, a configuração se repete, com 5% do montante total para clima (R$ 1,4 bilhão/ano) dedicados à adaptação e projetos com objetivos múltiplos, incluindo um componente de adaptação, somando 20% dos recursos (R$ 5,2 bilhões/ano). Destaca-se que 89% dos projetos envolvendo adaptação foram financiados por atores ou mecanismos públicos, enquanto os projetos de mitigação (redução de gases de efeito estufa) tiveram 50% do financiamento privado. Os dados são da Climate Policy Initiative.
São múltiplas as razões para o capital privado chegar timidamente à agenda de adaptação, do risco envolvido nos investimentos à dificuldade de inserir os benefícios socioambientais nas finanças privadas, passando pela falta de conhecimento técnico sobre o tema nas organizações. O fato é que a lacuna entre a necessidade de investimentos para adaptação nos países em desenvolvimento (da ordem de US$ 215-387 bilhões por ano até 2030) e o financiamento público internacional para a agenda (US$ 28 bilhões em 2022) não será superada sem que o investimento privado na agenda seja rapidamente escalado nos próximos anos e viabilizado por meio de múltiplos instrumentos, envolvendo CAPEX, crédito subsidiado, blended finance, assim como recursos de responsabilidade social empresarial e investimento social privado.
Relato empresarial em adaptação climática
Como denota a história da agenda de mitigação no Brasil e a experiência do Programa Brasileiro GHG Protocol, padrões e diretrizes são uma alavanca poderosa para esse movimento. Nesse mesmo sentido, a literatura converge a respeito da importância de indicadores objetivos e mensuráveis, sistemas de monitoramento e avaliação robustos para que projetos com a melhor relação custo-benefício sejam priorizados, recursos otimizados e accountability fortalecida.
Uma iniciativa pioneira no Brasil e no mundo desempenhará esse papel, e impulsionará a atuação empresarial em adaptação. O Programa Brasileiro de Relato Empresarial em Adaptação Climática (PBRA) está sendo construído por mais de 25 organizações entre representações setoriais, empresas, instituições da sociedade civil, de governo e academia. O longo de 2025 esse grupo multiatores coordenado pelo FGVces vem desenvolvendo as Diretrizes para relato empresarial em adaptação, documento base para o Programa, que será lançado, junto à plataforma on-line para relato, em 2026. No ano seguinte, em 2027, o Programa passará a operar publicamente, apoiando tecnicamente as organizações na sistematização e relato de suas informações, oferecendo treinamento e capacitação e tornando de acesso público dados relevantes para o alinhamento de esforços e o monitoramento e avaliação das estratégias privadas e suas contribuições para os objetivos nacionais para adaptação e resiliência.
A construção coletiva do PBRA coincide com um momento decisivo do debate internacional. Às vésperas da COP30 em Belém, as discussões sobre o Objetivo Global de Adaptação (GGA, na sigla em inglês) buscam justamente traduzir em parâmetros objetivos e métricas comparáveis, os avanços globais em adaptação, tornando visível o que vem sendo tratado como intangível: a resiliência construída por países, setores produtivos e comunidades diante da crise climática. Nesse contexto, a experiência brasileira de construir diretrizes nacionais de relato alinhadas ao setor privado, em sinergia com a agenda pública, torna-se um diferencial estratégico e uma contribuição relevante para a agenda nacional.
Mais do que um exercício voluntário de relato, o PBRA sinaliza a potência da cooperação entre setor empresarial, governos e sociedade civil para acelerar investimentos onde o financiamento público não alcança. Ao mesmo tempo em que o Brasil avança na institucionalização e regulação da adaptação – por meio da Política Nacional de Mudança do Clima, dos planos setoriais e da criação de garantias públicas, fundos de participação e instrumentos híbridos de mitigação de riscos –, iniciativas voluntárias como o PBRA tornam-se indispensáveis. Elas fortalecem a integração entre políticas públicas e estratégias privadas, alinham interesses de mercado às metas climáticas nacionais e ajudam a transformar adaptação em oportunidade, e não apenas em custo.
- Mariana Nicolletti é coordenadora do Programa Adapta do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGVces) e professora da FGV EAESP.
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