Estou triste. Hoje, após dias no hospital, partiu uma talentosíssima cantora e compositora brasileira, Angela Ro Ro, que foi referência para a maioria das pessoas LGBTQs de minha geração e com quem tive a honra de estabelecer uma relação, ainda que virtualmente, em quase todo tempo. Assisti a muitos de seus shows. Inclusive nos conhecemos pessoalmente em um deles, num bar em Botafogo, no Rio de Janeiro, em 2005. Eu, recém-saído campeão de um reality show popular, não entendia como as pessoas me pediam para tirar foto comigo e não com ela, a verdadeira ídola para mim. Angela, com seu humor afiado como uma lâmina, pediu-me dinheiro. Nós rimos e nos abraçamos. Ela já era parte da minha vida há muito tempo.
Trilha sonora das primeiras dores de amor na adolescência e no internato da Fundação José Carvalho. Companheira virtual nos bares de sapatão da Carlos Gomes – o Rosa Negra, o Charles Chaplin, o Adé Aló – onde minhas amigas, amigos e eu fazíamos uma parada antes das boates. Aliás, na extinta Home 24 (depois Holmes Bar e, por fim, boate Tropical), vi um de seus shows que mais me entristeceu. De lá para cá, muita coisa aconteceu e Angela se refez e se desfez como aqueles fenômenos da natureza incontroláveis pelo mercado.
De todas as lésbicas da MPB anteriores ou contemporâneas suas, ela foi a única a dar a cara a tapa, abrindo caminho para Cássia Eller e Mart’nália. Por isso mesmo, ela é a grande referência artística principalmente para gays, lésbicas e travestis nascidos na década de 1970. Era, ao mesmo tempo, o exemplo dos efeitos devastadores da homofobia na vida de uma pessoa pública, honesta que queria ser em relação ao seu amor. A imprensa homofóbica sempre buscava reduzi-la a seus “escândalos”, mas, como escreveu Caetano Veloso em letra dedicada a ela, seu grande escândalo era sua solidão, cujo fundamento era a lesbofobia de que era vítima.
Esse mecanismo cruel de transformar nossa existência em “escândalo” produzia e ainda produz solidão. E não foi diferente com Angela: cada vez que ela ria alto demais, amava sem esconder, bebia demais ou falava o que pensava, a sociedade encontrava um pretexto para reduzi-la à caricatura da “lésbica descontrolada”, apagando sua genialidade musical. A homofobia é sofisticada em suas estratégias de silenciamento: nos permite estar, mas não nos deixa brilhar.
Um episódio resume bem isso. No especial da TV Globo “Mulher 80”, exibido em 1979, que celebrava o protagonismo feminino na música popular brasileira, Angela entrou de última hora, discreta, apenas tocando piano. Ao contrário das grandes estrelas que tiveram destaque e apareceram na capa do disco derivado do programa, ela ficou invisibilizada. Não se tratava apenas de uma decisão de produção, mas de um gesto de exclusão simbólica: sua presença era tolerada, mas não celebrada. Sua arte podia ser ouvida, mas seu corpo lésbico não podia ocupar o centro do palco. Esse quase-apagamento ecoa a mesma lógica que a transformava em “escândalo” nos jornais e a isolava em sua solidão.
Angela sempre me inspirou. Batizei um dos contos de O anonimato dos afetos escondidos com o título de uma de suas músicas mais emblemáticas: “Só nos resta viver” – uma resposta sublime a “Meu amigo, meu herói”, de Gilberto Gil, que havia sido gravada por Zizi Possi. O livro é recente. O conto tem 25 anos. Eu recomendo que o leiam ao som dela.
Angela militou em suas músicas de maneira menos explícita porque sua existência já era um grito. A mais clara nesse sentido é o rock “Querem nos matar”, com letra sofisticada para a vulgaridade militante de hoje. Angela gostava de mim. Comentava meus textos. E muito antes de ela adoecer, Sandro Lobo, jornalista que canta e amigo meu, chamou-me para dirigir um show em homenagem a ela em Salvador. Nossa intenção era tê-la no palco. Não foi possível. Hoje no meu lábaro, Ro Ro se soma às estrelas que me iluminam.
Angela nasceu em 5 de dezembro de 1949, no Rio de Janeiro, e cedo se lançou numa carreira internacional, cantando em bares de Londres. Voltou ao Brasil e lançou em 1979 seu primeiro álbum, “Angela Ro Ro”, um marco da música brasileira, de onde saíram sucessos como “Amor, meu grande amor” e “Tola foi você”. Seguiram-se discos fundamentais, como “Só nos resta viver” (1980), “Escândalo!” (1981), “Eu desatino” (1985), “Acertei no milênio” (2000) e “Selvagem” (2017). Ao longo da vida, enfrentou vícios, censura e violência – chegou a ser espancada por homofóbicos e até pela polícia, o que a deixou cega de um olho.
Foi uma das primeiras cantoras brasileiras a assumir publicamente sua homossexualidade. Sua voz rouca, sua risada inconfundível, sua franqueza desarmada e seu piano feroz e delicado ao mesmo tempo a tornaram uma artista única.
Angela viveu e morreu com essa dor de ser e viver que todas e todos nós, LGBTQs, conhecemos. E mesmo assim deixou uma obra e uma memória que não se deixam apagar.
Ro Ro fica comigo esta noite.
Jean Wyllys é jornalista, escritor e artista visual. Autor de Falsolatria (Editora Nós e Edições Sesc São Paulo), entre outros livros de não-ficção, acaba de lançar o livro de contos O anonimato dos afetos escondidos (Planeta)