O cinema brasileiro é identitário. Mas sua identidade, hoje, é branca, masculina e cisgênera. Essa constatação, feita por Tatiana Carvalho, presidenta da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), não é mero detalhe estatístico: é a exposição de uma contradição estrutural. Uma indústria que deveria ser espelho da sociedade cristalizou exclusão ao longo dos séculos.
Embora 56% da população brasileira seja negra, três em cada quatro longas-metragens lançados comercialmente em 2016 foram dirigidos por homens brancos. Dos 142 filmes estreados naquele ano, nenhum teve uma mulher negra na direção, no roteiro ou na produção executiva. O estudo da Agência Nacional de Cinema (ANCINE), Diversidade de Gênero e Raça nos Lançamentos Brasileiros de 2016, analisou 1.326 profissionais do setor e revelou um padrão que não é acidente, mas sintoma: 75,4% dos diretores eram homens brancos, 19,7% mulheres brancas e apenas 2,1% homens negros. Nos roteiros, a concentração se repete: 59,9% assinados por homens brancos, 16,2% por mulheres brancas e 16,9% por parcerias entre ambos; os homens negros aparecem em 2,1% e em 3,5% em parcerias com brancos. As mulheres negras não aparecem. Não por inexistirem, mas porque o audiovisual lhes nega lugar nos espaços de criação e decisão.
A pesquisadora Márcia Cândido (CIES-IUL, Lisboa), integrante do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA), confirma o padrão. Ao analisar uma década de filmes de grande público, de 2002 a 2012, encontrou 84% de diretores e 74% de roteiristas homens brancos. Nas telas, o reflexo era imediato: 44% dos protagonistas também eram homens brancos, seguidos por mulheres brancas. Homens e mulheres negros relegados ao rodapé da hierarquia, presos em estereótipos ou simplesmente ausentes.
Nos prêmios do cinema brasileiro, entre 2002 e 2023, homens brancos receberam quatro vezes mais indicações à categoria de “Melhor Ficção” que todos os demais grupos somados e, mesmo entre os premiados, sua supremacia foi obscena: 70% das vitórias. Mulheres brancas aparecem em menor escala, mas ainda com algum acesso — 6 prêmios em 17 indicações. Já as mulheres negras seguem condenadas à ausência, não por falta de talento, mas pela operação estruturada de um sistema que insiste em lhes negar espaço. O estudo do GEMAA evidencia que essas distorções não são acidente, mas sintoma de uma engrenagem cultural que privilegia sempre os mesmos.
Mesmo quando lampejos de mudança surgem, como em 2022, eles dependem de políticas afirmativas. Dois filmes de grande público foram dirigidos por homens negros — Medida Provisória, de Lázaro Ramos, e Marte Um, de Gabriel Martins, este último fruto de um edital específico para realizadores(as) negros(as). No roteiro, o domínio dos homens brancos foi levemente reduzido, mas a exclusão de mulheres negras se manteve absoluta. O quadro é cristalino: sem ação afirmativa, o audiovisual nacional não rompe sua lógica de reprodução de privilégios.
É aqui que o conceito de epistemicídio, pontuado por Sueli Carneiro, se faz presente. Ele opera na destruição sistemática das vozes e narrativas negras. O cinema, quando se nega à pluralidade, fabrica não apenas ficções, mas verdades sociais distorcidas. Ele ensina quem pode ser herói e quem deve ser figurante. Ensina, inclusive, que há quem não mereça existir na tela.
Mas não é só a simbologia que está em jogo. O audiovisual é também economia e responde por 0,46% do PIB brasileiro e emprega mais de 300 mil pessoas. Cada real investido retorna R$ 2,60 para a economia. Excluir pessoas negras dessa engrenagem é negar mobilidade social, é sabotar a própria democracia. Porque uma democracia mutilada na representação é uma democracia pela metade.
No dia 3 de setembro, a Câmara dos Deputados realizou uma audiência pública sobre políticas afirmativas no audiovisual. A intervenção da APAN deixou claro: não se trata de diversidade como ornamento, mas de enfrentar o racismo estrutural que organiza a exclusão do povo negro também nas telas. Fortalecer empresas negras é condição para romper o ciclo histórico de subalternização, redistribuir recursos, gerar trabalho e sustentar narrativas que nos foram negadas. Assim como as cotas transformaram universidades e concursos, o cinema brasileiro precisa ser atravessado por políticas afirmativas capazes de enfrentar o epistemicídio que insiste em nos invisibilizar.
Não basta produzir: é preciso garantir circulação. Como lembra Tatiana, os filmes negros precisam chegar às salas, às plataformas e às escolas, para que se convertam em experiência social compartilhada. A diversidade, nesse sentido, não é enfeite nem concessão; é fundamento da inteligência coletiva e condição para que o cinema cumpra sua função pública. Um audiovisual restrito a poucos e sempre os mesmos não apenas exclui, ele empobrece a imaginação de todo o país. Por isso, políticas afirmativas no setor não podem ser tratadas como benevolência: são direito, são reparação e são estratégia de futuro. O Brasil só será democrático quando pessoas negras puderem não apenas aparecer nas telas, mas também decidir o que nelas será narrado.
Natália Carneiro é diretora de Comunicação em Geledés – Instituto da Mulher Negra e diretora da Casa Sueli Carneiro