Há idiomas em que literatura pode ser “any collection of written work” (EUA), até bula de remédios, como na Rússia, sendo que, neste país, quando a literatura implica o ato literário de escrever, passa a ser chamada “Literatura artística”. Em português, a arte está implícita (e explícita) no significado principal do termo “literatura”, tal como figura em qualquer dicionário, de modo que associar-lhe o adjetivo “artística” seria uma redundância.
Veja-se, por exemplo, a definição de “literatura” dada no dicionário mais consultado no Brasil, o de Antônio Houaiss, eletrônico ou impresso:
Literatura: substantivo feminino
- Rubrica: literatura.
uso estético da linguagem escrita; arte literária;
Ex.: tendências da l.
- Rubrica: literatura.
conjunto de obras literárias de reconhecido valor estético;
- Corolário (proposição que deriva de uma asserção precedente, produzindo um acréscimo de conhecimento por meio da explicitação de aspectos que, no enunciado anterior, se mantinham latentes ou obscuros):
sem uso estético da linguagem, a Literatura perde o significado principal que lhe é dado no Brasil, o de “arte”.
Ponto.
- Esclarecimento:
O que será essa “arte”, esse “uso estético” de que fala o dicionarista? É aí que a porca torce o rabo. Será o estilo o sinônimo de escritura? Sim, escritura, mas com algo a mais: mais o uso estético de situações, de fatos, de temas, de conhecimentos, que vou chamar de “procedimentos”, e que também implicam o uso estético das “figuras de retórica”.
- Parêntese (leitura opcional):
Abaixo, para iniciados e para interessados, vai a tabela dessas figuras, (DUBOIS, J. et al. Retórica geral. São Paulo: Editora Cultrix, 1974, p. 71), que retirei de meu artigo “Minhas aulas com Antonio Candido”, encontrável no Google:
- Estilo:
Chegamos ao punctum dolens: “estilo”. Um mundo de definições que vão de Aristóteles a Umberto Eco e que, obviamente, não cabem aqui. Antes de ir diretamente às que interessam ao que eu quero dizer, vou apenas indicar as duas obras de dois grandes ensaistas, de consulta mais recente, às quais me ative: “Sobre o estilo”, de Umberto Eco, em Sobre a Literatura (Record, 2003) e “O Estilo”, em O Demônio da Teoria, de Antoine Compagnon (Editora UFMG, 2010).
Em Eco lê-se: “Embora possamos discernir um núcleo originário, o termo latino stilus – instrumento para escrever – que lhe dá, por metonímia, origem, o estilo tornou-se sinônimo de escritura e, portanto, modo de exprimir-se literariamente.”
“Para Proust” – continua Eco –, o estilo torna-se uma espécie de inteligência transformada, incorporada na matéria”. Ou seja: digamos que um escritor/a tenha em mente uma trama inteligente, um suceder-se de episódios curiosos que quer transformar em obra literária. Pois bem: a inteligência de sua arquitetura, por mais atraente que seja, não basta se não houver também a inteligência incorporada na matéria, ou seja, incorporada nas palavras e no uso dessas palavras em suas figuras de retórica, que irão preencher a trama do autor.
“É dessas fontes que descende a ideia de estilo como modo de formar que está no centro da estética de Luigi Pareyson” – diz Eco. “Pertenceriam ao estilo não somente o uso da língua, mas também o modo de dispor estruturas narrativas, de desenhar personagens, de articular pontos de vista” etc. Ou seja: procedimentos. Digamos que um escritor/a tenha em mente uma estrutura narrativa metafísica insólita que irá suscitar o interesse do leitor. Pois bem, ele/a não deverá abandoná-la, após esboçada, mas deverá saber articulá-la ao longo da obra (tal como fez a sul-coreana, prêmio Nobel, Han Kang que elegeu a estrutura onírica como dominante, tanto em A vegetariana, quanto em Sem despedidas, por exemplo), ou fazê-la ressurgir como segunda história, por baixo da primeira, tal como explica Ricardo Piglia, em seu Laboratório do escritor.
E para Flaubert, concluindo com Eco, “o estilo é uma forma de moldar a própria obra e é certamente irrepetível, mas através dele manifesta-se um modo de pensar, de ver o mundo.”
É justamente a essa irrepetibilidade que Bakhtin chamou de “unicidade” de cada um nós, unicidade essa pela qual cada um deve responder. Como? Expressando-se, não deixando que essa sua expressão opte – a não ser em certos casos obrigatórios, exigidos pelo gênero que focaliza o “fato” – pela vertente da objetividade (estilo simples ou neutro, stilus humilis, conforme os tratados de retórica analisados por Compagnon ), mas que seja o reflexo de sua singularidade própria, optando pela vertente subjetiva, que é diferente para cada um e é fruto da experiência, da vivência, da formação, e etc. de cada um de nós, e que, mediando os procedimentos, pode chegar a ser arte e ainda tentar escapar das garras da Inteligência Artificial.