Quando li Kafka pela primeira vez, devia ter 13 ou 14 anos, lá em Maceió, onde nasci. Na década de 1980, já devorava Agatha Christie, Harold Robbins e Sidney Sheldon, além de muita HQ. Mas eis que vovó me disse mais ou menos assim: “pare de ler essas bobagens e leia o Kafka. Você vai gostar. É a história de um homem que acorda em uma manhã transformado numa barata”. Óbvio que, adolescente que era, fiquei curioso. Assim chegou em minhas mãos A Metamorfose, em uma edição que, lembro, era uma tradução do espanhol. Foi uma epifania e um choque ao mesmo tempo, assim como tinha sido anos depois A Fera na Selva, de Henry James. Kafka, desde então, é um dos meus escritores mais amados. E este ano comemoramos o centenário de outro clássico seu.
“Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.” Quiçá essa seja uma das frases iniciais mais emblemáticas de um livro na literatura mundial. No romance, o protagonista de O processo (um heterônimo do autor?) é assombrado de supetão por uma acusação sem nenhuma explicação e submerge em um processo engendrado por burocratas e suas leis enigmáticas e incompreensíveis que se materializam em um tribunal desprovido de rosto. Kafka iniciou a escrita do livro em agosto de 1914 (dois anos após ter escrito sua obra-prima, A Metamorfose), mas só foi publicado postumamente, em 1925, um ano após sua morte. Uma obra inacabada e um dos romances mais importantes do século 20 só veio a público graças a Max Brod, seu melhor amigo, que não acatou o pedido de Kafka para destruir todos os seus manuscritos após sua morte.
Convidado pela também centenária Biblioteca Mário de Andrade (BMA), materializei um projeto antigo, que traz o autor para a atualidade. Na exposição “O Processo – 100 anos depois”, a biblioteca comemora o centenário do famoso livro de Franz Kafka, cuja primeira edição encontra-se no Acervo de Obras Raras e Especiais da instituição. No final da década de 1970 e início da seguinte, por intermédio da viúva de Otto Maria Carpeaux, a biblioteca adquiriu a coleção do grande crítico literário austríaco radicado no Brasil. Dentre as importantes obras adquiridas nesta compra, estava um exemplar da primeira edição do livro. Para a mostra, convidei a artista visual, escritora e filósofa Marcia Tiburi, que apresenta trinta desenhos da sua série Grafomas (2023-2025), realizados com caneta e tinta sobre papel; e duas performances que atualizam a obra do escritor tcheco para o hic et nunc. O aqui e agora.
Vale ressaltar que o escritor e pesquisador piauiense/carioca Eduardo Neiva já anunciava em 1988 na edição do livro O outro processo – As Cartas de Kafka a Felice, de Elias Canetti, que o autor, laureado com o Prêmio Nobel em 1981, “vê Kafka como um grafocrata, um escritor que não apenas analisa o poder totalitário que desilude e corrompe a condição humana, como alguém que faz da linguagem um instrumento feroz de dominação”. Kafka e sua obra, em especial O Processo, que em sua escrita o autor — segundo seu maior tradutor no país, Modesto Carone — se utiliza de “um alemão cartorial”, continua a nos impactar com a sua desumanização burocrática (des)estruturada. Decerto porque estamos continuamente nos tornando indivíduos kafkianos em uma sociedade idem.
Como afirma assertivamente o gaúcho Lenio Luiz Streck, um dos mais respeitados juristas do país (em um texto de junho de 2025), o livro “retrata vigorosamente o instrumentalismo processual” que grassa até hoje no mundo. Cem anos depois, a obra continua a ser atemporal e atual, e, para ele, “nos lembra de que a porta da lei permanece diante de nós, imponente e enigmática”. A justiça continua a ser um labirinto de normas, princípios nos quais não podemos na maioria das vezes (como no mito grego) contar com o fio de Ariadne para enfrentar o Minotauro. Será que Kafka personificou um Teseu que sempre se confronta com um impasse no qual a conduta moral é intransponível?
Permeado por uma atmosfera claustrofóbica, sombria e surreal (o advogado, por exemplo, recebe seus clientes na cama), Walter Benjamin nos lembra que no livro “o processo contra Josef K. é discutido cotidianamente em quintais, em salas de espera e assim por diante, sempre em locais impróprios e inesperados”, nos quais, inclusive, se situam os cartórios. Lembro do ensaio “Das Unheimliche” (“O infamiliar”, 1919), de Freud. Afinal de contas, a opacidade do poder — cuja voz reverbera em um eco silencioso e em uma polifonia de vozes estranhas, mas também familiares — não tem face. Uma obra emblemática. (Re)ler O Processo nos atualiza de um pesadelo no qual as coisas, as situações nunca se revelam por completo e onde a lógica absurda das instituições e rituais sem sentido traz à tona a alienação do indivíduo frente ao poder. Uma narrativa que aprisiona, sequestra a atenção do leitor que, afinal de contas, vive nessa contemporaneidade na qual o cidadão se defronta com uma nova tribuna, digital e baseada em uma lógica algorítmica, (im)pessoal, (in)diferente.
Ler Kafka é um “decifra-me e devora-me” contínuo. Como um grande olho que mira tudo e ecoa o truísmo de Nietzsche, que afirmou que “quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você”.
Jurandy Valença é curador, jornalista e gestor cultural. Foi diretor da Biblioteca Mário de Andrade, diretor adjunto do CCSP, coordenador dos centros culturais e teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e diretor de projetos do Instituto Cultural Hilda Hilst