Em um mundo pós-pandemia, quando o medo virou constituição e a tecnocracia, religião de Estado, Cabrália é apresentada: não como país, mas como farsa histórica em cartaz há quinhentos anos — um “laboratório de poder com sotaque tropical e enredo de tragicomédia”. É nesse cenário, ao mesmo tempo absurdo e profundamente familiar, que se desenrola O Último Banquete da República, romance de Vincis Wolf que desafia a fronteira entre ficção, documento e sátira política. A obra, estruturada em torno de uma série de jantares realizados pela Grão-Confraria da República, transforma a gastronomia em metáfora central para um ritual de poder onde cada prato serve não à fome, mas à impunidade. Bifes à “Impunidade com redução de julgamento”, esferas de “Transparência Recheadas de Silêncio” e sobremesas de “Justiça com calda de clemência” compõem um cardápio onde a corrupção é refinada, o cinismo, bem temperado, e a culpa, servida em temperatura ambiente, porque ninguém mais sente calor.
O verdadeiro ingrediente principal, no entanto, não está no prato, mas na mesa: a elite cabralina, composta por tecnocratas de fala mansa, sindicalistas ufanistas, acadêmicos que vendem críticas em pacotes e políticos que governam com discursos de arquivo. Todos são convidados para um banquete que, logo se percebe, é na verdade um funeral — o funeral de uma República já morta, mas que insiste em se alimentar de si mesma. O Cozinheiro, figura enigmática e quase mítica, não é um assassino, mas um encenador: sua arma não é o veneno, mas a verdade disfarçada de receita. Ele não mata os comensais; apenas os confronta com o sabor do que eles mesmos cozinham há décadas. E é nesse jogo de espelhos, onde a cozinha vira tribunal e o jantar, julgamento, que o romance alcança seu tom mais agudo e perturbador.
O livro, no entanto, não se limita à alegoria política. Ele é, antes de tudo, uma investigação sobre a própria escrita, a autoria e a ética da transformação da vida em literatura. No centro dessa reflexão está Baltazar Constantino Barbosa — escritor, personagem, vítima e cúmplice — um homem que, ao tentar escrever sobre o mundo, descobre que o mundo já estava escrevendo sobre ele. Seus textos, suas dúvidas, seus fracassos, tudo parece ter sido previsto, roubado, ou simplesmente incorporado por uma narrativa maior, da qual ele não tem controle. Ao encontrar um diário misterioso, um plano de banquete e uma lista de convidados, Barbosa é confrontado com a possibilidade de que sua obra mais importante não será escrita por ele, mas sobre ele — e talvez por outro. A dúvida sobre a autoria, tão presente ao longo da trama, transforma o romance em um labirinto meta-literário, onde perguntas como “quem escreve?”, “para quem se escreve?” e “até que ponto é ético transformar as pessoas em personagens?” não são apenas temas, mas estrutura.
A prosa de Vincis Wolf é densa, irônica e deliberadamente barroca, como se Machado de Assis e Clarice Lispector se encontrassem em um bar de bairro para discutir o fim do mundo enquanto corrigem provas de um manuscrito. Frases como “escrever é como cozinhar para convidados que você não conhece: você capricha na apresentação, mas sabe que metade deles vai reclamar do sal” ou “os mortos não processam por direitos autorais” revelam um humor negro que não busca o riso, mas o desconforto. O estilo, por vezes excessivo, é intencional: reflete a grandiosidade decadente da elite que o romance satiriza, um mundo onde tudo é exagerado para esconder o vazio. As digressões filosóficas, as metáforas culinárias e os fragmentos de textos fictícios — como críticas de revistas como a Vórtice ou a Pólvora & Poesia — não são digressões vazias, mas parte de um projeto maior: o de construir um universo onde a realidade, a ficção e a crítica se confundem até se tornarem indistinguíveis.
O romance também é um retrato afiado da cultura contemporânea, onde algoritmos geram opiniões, onde “parecer inteligente” é mais importante do que sê-lo, e onde a verdade é um produto perecível, substituído por narrativas de conveniência. Em um momento emblemático, o personagem Dr. Henrique Sampaio descreve o processo de produção de conteúdo moderno: basta digitar “me dê argumentos para parecer inteligente criticando o mundo” e, pronto, surge um texto semicoerente que será compartilhado com orgulho. Essa cena, apesar de cômica, ressoa como um diagnóstico preciso de uma era em que a forma devorou o conteúdo — e o banquete, a própria fome.
Apesar do tom ácido e do pessimismo estrutural, o livro não é desesperançado. Sua força está justamente em sua capacidade de incomodar, de abrir a janela da cozinha do poder e gritar que o cheiro bom vem de gente queimando lá dentro. E é no gesto de escrever — mesmo que seja para as paredes, mesmo que seja em um guardanapo, mesmo que seja com erros de digitação e teclas emperradas — que reside um ato de resistência. Escrever, aqui, não é redimir. É testemunhar. É dizer, como o próprio Barbosa murmura ao acomodar uma folha na máquina de escrever: “Espere um pouco, ainda não terminei de fugir.”
O Último Banquete da República, com estrutura fragmentada e vozes múltiplas, é mais do que um romance. É um dossiê ficcional, uma autópsia da República, um manifesto disfarçado de história de amor entre um escritor e suas falhas. Não é uma leitura leve, nem digerível. Mas é necessária. Porque, no fim, a pergunta que o livro deixa não é sobre quem matou quem, mas sobre quem, afinal, ainda está disposto a contar a verdade — mesmo que seja servida com um toque de absinto e um fundo de vinho barato.
Veredito: Uma obra indispensável para os tempos atuais. Um romance ácido e inteligente que usa a alegoria para fazer uma autópsia implacável do poder, da ética e da memória nacional. Não é uma leitura leve ou digestiva, mas seu sabor amargo e complexo permanece na boca – e na mente – muito depois da última página.
Ficha técnica
Título: O Último Banquete da República
Autor: Vincis Wolf
Editora: Publicação Independente
Páginas: 478
Gênero: Ficção política / Meta-romance / Literatura contemporânea